E se uma aldeia na Guarda recebesse refugiados? As casas já estão a ser reabilitadas

Uma estrada comprida isola Ima, uma aldeia na Guarda que se prepara para receber quatro famílias de refugiados e migrantes. As casas cedidas pelos habitantes estão a ser reabilitadas enquanto uma psicóloga constrói uma comunidade coesa. E se pudéssemos “repovoar o interior através da integração”?

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Teresa Pacheco Miranda

Na aldeia de Ima, uma optimista e um pessimista conversam ao sol. Falam sobre um plano em andamento para o futuro da pequena aldeia a 15 quilómetros da Guarda, onde ele vive “desde sempre” e ela veio para ajudar a construir o projecto Lar. O tema: e se quatro famílias de refugiados ou migrantes escolhessem ir morar para a aldeia de 25 habitantes, em casas cedidas por eles?

Não é que Joaquim Almeida seja derrotista, explica Bárbara Moreira abrindo um parêntesis na conversa entre os dois. Mas à medida que avança a reabilitação das quatro casas, um dos mais antigos habitantes da Ima preocupa-se com a possível falta de emprego e autonomia financeira de quem as vai habitar. “Quero pessoas aqui. Trabalhadoras e sérias, para viverem dignamente, tão bem como eu ou ainda melhor. Desde que tenham trabalho é tudo que importa”, vai repetindo o bombeiro reformado, a cada argumento da fundadora do Lar

Os dois conhecem-se desde 2018, ano em que Bárbara Moreira, 30 anos, escolheu Ima para alicerçar “a ideia ambiciosa de repovoar o meio rural através da integração”. “Fomos muito bem recebidos quando chegamos aqui”, lembra-se, depois de considerar terrenos no Alentejo e em Montalegre. “A aldeia reunia as condições todas: altamente despovoada, a população que ainda existe é envelhecida e geograficamente está próxima de tudo o que é fundamental para uma vida plena”, enumera.

As obras já começaram. Estão a reabilitar quatro casas cedidas por habitantes da aldeia durante dez anos. As lojas das habitações de pedra estão repletas de móveis, electrodomésticos, telhas e janelas, muitos deles usados e doados. Houve empresas a oferecer o chão, madeiras e as tintas que voltam a dar cor às paredes. Há uma preocupação em recuperar os móveis e portas originais – e em manter em alta o entusiasmo inicial da população.

Bárbara Moreira, 30 anos, fundadora do projecto Lar
Vanessa Rei, 30 anos, psicóloga
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Bárbara Moreira, 30 anos, fundadora do projecto Lar

“Isto é tudo muito volátil. As pessoas abraçaram o projecto com muita boa vontade, mas o tempo que leva a implantá-lo começa a criar algumas dúvidas”, contextualiza Vanessa Rei, técnica social do projecto. “O receio é o normal. O desconhecido causa sempre medo. E, neste caso, o maior medo tem a ver com todo o alarmismo criado à volta da questão dos refugiados. Nas nossas redes sociais, temos sempre instigadores do medo nos comentários.”

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Uma das quatro casas que vão ser reabilitadas na aldeia de Ima, na Guarda. Foram cedidas pelos habitantes por dez anos.

Para o combater diariamente, a psicóloga de 30 anos, natural da Guarda, montou um escritório na aldeia de que nunca tinha ouvido falar. Desde Setembro de 2019 que procura e entrevista famílias que já vivem em Portugal para integrar na comunidade de Ima. Ao mesmo tempo, visita quem quase já não sai de casa, recebe voluntários, organiza “Diálogos sem Preconceito” com associações locais de apoio ao imigrante e outras actividades que fortalecem a coesão dos moradores, antes de receberem os novos vizinhos. “Nós também estamos presentes por eles”, resume. “Queremos envolver o máximo possível a comunidade, este projecto também é deles.” 

Antes, Vanessa prestava apoio social aos emigrantes portugueses no Consulado-Geral de Portugal, em Paris, e em Londres trabalhou com crianças e jovens vítimas de abuso. Regressar à Guarda “não estava nos planos”. Até que o Projecto Lar a fez voltar a casa. “O Lar ataca ao mesmo tempo o despovoamento, o isolamento social dos idosos, a falta de mão-de-obra e a questão crescente do número de refugiados”, enumera. Para Bárbara e Vanessa, o que estão a construir é “uma resposta óbvia”. “Se nós temos casas e terrenos que estão completamente ao abandono, estava tudo encaixado.”

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A aldeia de Ima fica a 15 quilómetros da Guarda e tem 25 habitantes.

Nos terrenos que rodeiam a aldeia, uma área de três hectares, vão dar formação e plantar açafrão, bagas goji e groselha. Se as plantações vingarem, como o engenheiro agrónomo Miguel Serrão abona, o grupo Jerónimo Martins, dono do Pingo Doce e um dos primeiros a apoiar financeiramente o projecto, “garante o escoamento total dos dois frutos durante dez anos”.

Seguindo as regras do projecto, pelo menos um dos membros de cada família terá de trabalhar na agricultura. “A componente agrícola vai dar-nos sustentabilidade, mas somos nós que vamos pagar aos trabalhadores, eles não têm de vender nada”, explica Bárbara Moreira, que em Fevereiro de 2018 oficializou a Associação de Apoio à Inclusão de Migrantes e Refugiados, uma instituição particular de solidariedade social.

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As obras de reabilitação estão num "bom caminho, mas com alguns atrasos", diz Bárbara Moreira, fundadora do Projecto Lar.

No final de 2017, a jovem do Porto despediu-se (entretanto já trabalha numa outra empresa), fez uma formação em empreendedorismo social no IES - Social Business School e começou um mestrado em Ciências Políticas, Segurança, Defesa e Prevenção de Conflitos, em Aveiro.

Procurou uma “bússola moral” e experiente para a ajudar a guiar o plano que andava a delinear: Ghalia Taki, intérprete, mediadora e conselheira que fugiu de Damasco, na Síria, para o Gana, antes de chegar a Portugal em 2014. Durante vários dias ficou detida no aeroporto de Lisboa com a mãe, o filho e o marido. Há dois anos que trabalha como intérprete no Serviço Jesuíta para os Refugiados, em Lisboa. “Eu nunca tive de passar fronteiras com passaportes falsos. Nunca tive de me separar da minha família ou criar comunidade numa comunidade estrangeira. Nunca tive de procurar emprego sem documentos. Nunca fiquei retida num aeroporto. Nada disto me aconteceu a mim”, expõe Bárbara, que não fecha “o projecto a famílias portuguesas altamente carenciadas”. "Desenvolvemos uma solução para famílias que, tendo terminado os programas de integração, se vêm com dificuldades financeiras, sem fonte de rendimento ou alojamento estável”, explica.

Agostinho da Silva, 54 anos, é presença regular nas obras, eventos e oficinas na aldeia. Professor de artes e ex-presidente da junta de freguesia de Jarmelo São Pedro, cedeu a casa maior: “a casa da avó Rainha”, como ele lhe chama. Foi ele que desmontou as portas com 80 anos que os trabalhadores de construção civil andam agora a voltar a ligar à casa. Os atrasos no projecto-piloto, que chegou a prever o final das obras para Dezembro de 2018, não o desmotivam. “Claro que nós sonhávamos que isto fosse um clique. Mas entre o clique e a realidade há sempre um caminho.” Já não vive em Ima, mas foi um dos primeiros a conhecer Bárbara Moreira, que lhe pediu para estar presente na apresentação pública do projecto na aldeia. “Vinha como cara conhecida para lhes dar apoio, mas não foi preciso”, ri-se. “Quando cheguei já estavam todos emocionados.”

Agostinho Silva, 54 anos, cedeu a casa dos avós por dez anos.
Hortênsia cedeu a casa onde viviam os pais por dez anos.
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Agostinho Silva, 54 anos, cedeu a casa dos avós por dez anos.

Há umas semanas, a porta da casa que pertencia aos pais de Hortênsia Pereira, a primeira a ficar pronta, estava entreaberta. Tinham terminado as obras. Ela, curiosa, espreitou. “Está muito bonita”, confidenciou. No T2 com uma pequena cozinha e sala de estar, a poucas portas da casa onde vive sozinha, chegaram a dormir “muitos irmãos”. “Quando quiserem fazer as camas, eu dou a roupa.”

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