Itália em quarentena: a vida a um metro de distância e a fechar às 18h
O país europeu mais afectado pelo novo coronavírus anunciou medidas drásticas para todo o território. Há pessoas a ir trabalhar, mas às 18h fecha tudo. Nos espaços públicos ninguém pode estar a menos de um metro de outras pessoas.
Como é o dia-a-dia num país em quarentena, um país de 60 milhões de cidadãos, em que há mais de dez mil infectados e morreram 631 pessoas? As respostas vão variar muito. Irene Piccinelli, que vive numa localidade no centro da epidemia, confessa que está a lutar para se manter sã. Giulio Vanoni, em Bolonha, admite a sua sorte por poder passar a quarentena num apartamento com a namorada. Leonor Baptista, a fazer Erasmus em Roma, poderia ter regressado para Portugal mas optou por ficar, e Maria Ana Barata, a fazer doutoramento em Florença, pensa que as medidas decretadas transmitem confiança de que a situação irá voltar ao normal.
“Nunca vi nada assim, e é um pouco assustador”, diz Irene Piccinelli, que vive com os pais na pequena localidade de Montichiari, em Brescia, na Lombardia, uma das regiões mais afectadas pelo novo coronavírus. “Só tenho 20 anos, não é que tenha visto muita coisa, mas a minha mãe trabalha no hospital e… nunca a vi assim”, desabafa. O hospital está como a grande maioria das unidades de saúde dedicadas a doentes com covid-19, conta, e não há camas nem material suficiente para todos os casos mais graves. “As pessoas que trabalham nos hospitais estão tão stressadas que estão a tentar encontrar apoio psicológico para elas”, diz.
Irene Piccinelli não está preocupada por si, sabe que se ficar infectada não deverá ter problemas de maior. “Preocupo-me com a minha família, com a minha avó…” E com o panorama geral. Por outro lado, a crise trouxe o melhor das pessoas, nota: “Há gente a fazer uma espécie de serviços de entrega a pessoas mais velhas para que não tenham de sair de casa, há crowdfunding para os hospitais que estão a enfrentar tantas dificuldades… ninguém deixou de trabalhar nos hospitais mesmo em condições duras e esse é um lado bom.”
Mas está a passar um mau bocado. “Estou há dias dentro de casa – a recomendação é para ficar em casa embora haja pessoas a sair”, diz. “O meu namorado vive muito perto mas não posso vê-lo até dia 3 de Abril”, conta. O pior de tudo: “A incerteza total sobre o que vai acontecer”, diz.
Para Irene Piccinelli é importante divulgar a situação em que está Itália e que outros “compreendam como é viver nesta situação, para que prestem atenção e tenham cuidado”.
Polícia pode questionar motivos de deslocação
A extensão de quarentena significa que cidades que estavam até agora com medidas muito mais suaves passaram a ter medidas muito mais apertadas. Roma, por exemplo.
“Um grupo de amigos saiu para tomar aperitivos e foram sentados todos a um metro uns dos outros, com um lugar vago entre cada”, conta Leonor Baptista, 21 anos, estudante portuguesa a fazer o programa Erasmus na capital italiana. “Se algum se levantava, alguém gritava logo: ‘um metro, um metro!'”, diz. Tem sido assim também nas filas para os supermercados, onde quem quer entrar fica a aguardar numa fila com toda a gente separada por pelo menos um metro.
O mesmo relata Giulio Vanoni, 21 anos, que está “preso” em Bolonha, onde estuda Línguas, Mercados e Culturas da Ásia. Os gabinetes públicos têm funcionários à porta a garantir que não há concentrações de pessoas no interior, por exemplo. Os transportes públicos funcionam normalmente, mas já não se pode entrar pela porta da frente dos autocarros para não se estar ao pé do motorista, e há restrições nas entradas para as pessoas não estarem demasiado perto umas das outras.
Giulio Vanoni é de uma cidade pequena da Lombardia e escolheu manter-se em Bolonha porque não queria pôr em perigo os pais e avós caso fosse infectado com o vírus, por um lado, e por outro, confessa, porque não queria acabar de quarentena na sua aldeia de 400 pessoas.
Embora em Bolonha não haja “muito para fazer” – todos os bares e restaurantes fecham às 18h, todos os ginásios e piscinas estão encerrados – sempre está num apartamento com a namorada, o companheiro de casa e a namorada deste. “Tenho muita sorte”, resume. “Não saímos muito, mas cozinhamos, temos filmes e jogos, também vamos estudando”, diz. A sua faculdade vai começar a oferecer aulas online esta semana.
Em Roma, Leonor Baptista chegou a considerar regressar para Portugal depois do anúncio de restrições alargadas a todo o país feito na segunda-feira à noite (como fizeram muitos dos estudantes Erasmus). Mas tanto ela como as suas companheiras de casa – outra portuguesa, uma tunisina e uma turca – decidiram ficar.
Todos os museus estão fechados, não há aulas, mas ainda há muito o que fazer: “O meu plano era arranjar livros, um instrumento musical, talvez um ukulele, ir desenhar ou pintar para as praças...”, diz. E há sempre “as casas uns dos outros”. O companheirismo e humor são essenciais numa situação excepcional e as pessoas “tornam-se muito mais próximas”.
Tanto Leonor Baptista como Giulio Vanoni criticam, no entanto, o pânico que se instalou, com muitas pessoas a correr aos supermercados, carregando grandes quantidades de provisões. “Como se os supermercados fossem fechar ou as pessoas fossem todas impedidas de sair de casa – não vivemos numa ditadura!”, diz Giulio Vanoni.
Também se nota mais polícia na rua, diz Leonor Baptista. E a polícia pode, de facto, mandar parar quem esteja em trânsito para saber para onde vai e se tem razão para o fazer. Giulio Vanoni conta que o pai, por exemplo, tem uma autorização para trabalhar noutra localidade que não aquela em que vive.
Uma mesa, uma cadeira
Em Florença, a portuguesa a fazer doutoramento em Direito Maria Ana Barata conta que a cidade, em geral cheia de gente, estava hoje quase vazia. “Locais como a Ponte Vecchio ou a Praça do Município não tinham quase ninguém, só de noite é que tinha visto tão vazios”, descreve. “O que acho bom sinal, as pessoas estão-se a resguardar.”
De resto, se já há vários dias que já não podia beber café ao balcão, e se as cadeiras foram desaparecendo dos cafés (ficando apenas uma cadeira por mesa), esta terça-feira muitos restaurantes e cafés estavam fechados mesmo antes da hora obrigatória de encerramento às 18h.
Maria Ana Barata diz ainda que “em momento algum” sentiu “pânico ou violência”, apenas um relato de um grupo de jovens que se juntou a beber no sábado à noite numa das praças da cidade, o que foi “mal recebido pela vizinhança”. Mas nota que a região também não é das mais afectadas do país. As medidas excepcionais nacionais decretadas pelo Governo “transmitem, mais do que pânico, confiança de que em breve se pode voltar à vida normal”.
Embora note que foi a primeira vez que se viu sujeita a medidas ditadas por um evento exterior, o que é “uma experiência estranha”, Maria Ana Barata diz que acabou por pensar nas pessoas que enfrentam condicionantes em países em guerra ou conflito. “Faz-nos reflectir como a nossa vida é livre e privilegiada.”
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