Ano 2020, o ponto de viragem
Só quando compreendermos que esta não é apenas uma luta feminina, mas uma luta pessoal e cultural de todos nós, mulheres e homens, é que ela se tornará prioritária. Façamos de 2020 o nosso ponto de viragem.
Quando era estudante em Coimbra, antes de 1974, não ficava bem a uma mulher sair sozinha à noite. Mesmo que eu nunca tenha respeitado essa norma social, a diferença na participação de mulheres e homens era marcante nas conversas de café – onde muitas vezes se construía a história –, que se prolongavam pela noite fora ou em outros eventos académicos. Registo esta pequena lembrança para mostrar como o combate aos preconceitos sociais também depende da coragem pessoal para vencer pequenas lutas diárias, não se conformar com estereótipos (mandar, a política, a direção de empresas, a noite é mais para homens, estar em casa, cuidar dos outros é uma tarefa de mulheres), e nunca acreditar que algo muda sem que seja preciso fazer muito por isso, com paixão e com convicção.
Em 2018 defendi na Assembleia da República a nova lei da paridade. Ouvi, então, argumentar, com grande naturalidade, que a lei não podia aplicar-se às freguesias: não havia mulheres para ocupar lugares cimeiros. Por isso, pedi ao INE as estatísticas sobre freguesias, quantos homens e mulheres lá residiam, e, quase invariavelmente, eram mais elas do que eles. Portanto, as mulheres existem, organizam as festas da freguesia, fazem voluntariado social, mas para a política, alegadamente, não estariam disponíveis. Se então tivesse dúvidas, teria encontrado uma razão adicional para estabelecer quotas. Por ora, é a única maneira de os partidos se esforçarem para terem mulheres entre os eleitos.
Ouço com frequência argumentar que há outras lutas mais importantes do que ter mais mulheres em cargos de direção. Seguramente que sim. Mulheres que não vão à escola, que são vítimas de mutilação genital feminina, que não podem escolher com quem casar, cujos direitos sexuais e reprodutivos não estão assegurados; mulheres que são sobrecarregadas com deveres de cuidado dos pais, dos filhos, com limites graves na sua vida pessoal e profissional, que têm salários e carreiras desiguais às dos homens, pensões também; mulheres vítimas de violência física e verbal, que demasiadas vezes lhes têm custado a vida.
Há muitas lutas ganhas e muitas mais batalhas ainda por ganhar. Cada pequena vitória tem, por isso, de ser comemorada, cada dia deve ser assinalado. Este ano, o Dia Internacional da Mulher assinala o 25.º aniversário da Conferência e Plataforma de Ação de Pequim. Para quem não se recorda, foi nesta conferência que Hillary Clinton afirmou: “Human rights are women's rights and women's rights are human rights.” Desde então houve alguns progressos, mas foram (demasiado) lentos. Mesmo na União Europeia, só este ano haverá uma Estratégia para a Igualdade de Género, que prevê, entre outras, medidas vinculativas para combater as disparidades salariais entre homens e mulheres.
O ano 2020 é aquele de sermos mais exigentes, em todas as frentes onde é preciso lutar, das desigualdades herdadas de um passado recôndito aos direitos existentes que nunca são adquiridos, passando pelas opções que podem tornar-se em desigualdades futuras, como a sub-representação de raparigas na formação em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM). Para não ouvir mais aquela história do robot construído numa sala de aulas em que todos tinham participado: os rapazes programaram e as meninas fizeram a roupinha. Duas atividades louváveis para serem igualmente repartidas.
Nenhum de nós, homem ou mulher, deve tolerar que duas pessoas iguais sejam tratadas de forma tão diferente; nenhum de nós deve assistir a cenas de violência ou de assédio baseado no género e cruzar os braços; nenhum de nós deve apoiar o domínio dos homens na vida pública e política, tanto nas listas como depois delas na distribuição de funções (que já não é tão visível e publicamente escrutinada, como se vê aqui no Parlamento Europeu).
É urgente passarmos a abordar a igualdade de género de forma mais pessoal, com atenção ao nosso dia a dia. Não basta fixar objetivos globais, como já fizemos em Pequim. Não bastam estratégias de género e leis progressistas pelo mundo, por muito importantes que sejam. Só quando compreendermos que esta não é apenas uma luta feminina, mas uma luta pessoal e cultural de todos nós, mulheres e homens, é que ela se tornará prioritária. Façamos de 2020 o nosso ponto de viragem.
P.S.: Faço aqui um apelo aos jovens: digam-me quais as vossas razões para lutar pela igualdade de género. Lancei, nas redes sociais, a campanha #8razoesparalutar e, nesse âmbito, escolherei as melhores ideias para virem ao Parlamento Europeu. Mais informação no meu perfil @leitaomarquesep.