Cancro do colo do útero: e se Maura tivesse feito os testes mais cedo?

Actualmente, morrem mais mulheres no mundo inteiro devido a cancro do colo do útero do que por complicações da gravidez e do parto. Em 2018, 311.000 mulheres morreram devido a este tipo de cancro e a maioria vivia em contextos de baixos rendimentos.

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Séverine Caluwaerts

Viajei para Moçambique, há dois anos, para ajudar as equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) na monitorização do cancro do colo do útero e na gestão de casos complicados. Em Maputo, a capital do país, a MSF trabalha com enfoque na detecção deste tipo de cancro em mulheres com VIH positivo porque estão em maior risco de desenvolver a doença. A epidemia do Vírus da Imunodeficiência Humana é endémica no país e, apesar de uma em cada oito mulheres viver com o vírus, o tratamento anti-retroviral tem vindo a tornar-se muito mais acessível nos anos recentes.

Juntamente com as enfermeiras, eu acompanharia as consultas de saúde sexual e reprodutiva toda aquela manhã em Maputo. Enfermeiras e pacientes riam-se do meu muito limitado domínio do português mas, de alguma forma, conseguiam entender-me. As mulheres vinham à consulta por várias razões: para fazer testes de VIH, planeamento familiar, a primeira consulta de cuidados pré-natais e para a detecção do cancro do colo uterino. Em alguns casos, uma só paciente fazia o teste de VIH, planeamento familiar e detecção daquele, tudo numa só consulta. Vi umas 20 mulheres e adolescentes nessa manhã.

A última paciente foi Maura (nome fictício), de 40 anos. Assim que entrou pela porta vi que estava muito magra e reparei logo que tinha os gânglios linfáticos no pescoço inchados. “Bem-vinda, Maura”, cumprimentei, e apresentei-me: “Sou a doutora Séverine, da MSF”. Respondeu-me com um leve sorriso. A enfermeira pergunta-lhe por que razão veio à clínica. “Dói-me o estômago”, diz. “E tenho algo sujo a sair-me da vagina.”

Desejo prontamente que seja “apenas” uma doença sexualmente transmissível, algo que possamos tratar. Mas, durante o exame, a enfermeira e eu constatamos que Maura tem uma massa volumosa proveniente do colo do útero e saliente na vagina. Uma observação mais aprofundada revela que aquela massa se estende à parede pélvica.

Depois de Maura se voltar a vestir, aconselhamo-la a fazer o teste de VIH. Ela concorda e, como suspeitávamos, o resultado é positivo. A enfermeira senta-se com Maura e explica-lhe muito delicadamente que ela tem duas doenças graves: cancro do colo do útero e VIH. A enfermeira assegura-lhe que faremos tudo o que está ao nosso alcance e que a vamos encaminhar para a clínica de VIH onde poderá começar o tratamento naquele mesmo dia.

O tratamento para o cancro do colo do útero que Maura tem é, porém, complicado. É inoperável e ela tem de fazer radioterapia para ter alguma hipótese de sobrevivência. Não existe nenhuma unidade de radioterapia em Moçambique, pelo que as pacientes são referenciadas para hospitais na África do Sul – mas, na realidade, este sistema não funciona porque se trata de uma transferência para muito longe, demasiado cara e extremamente complicada.

Já faz dois anos que abracei a Maura, lhe desejei as melhoras e tudo de bom e regressei a casa com uma sensação de mal estar no estômago. Os graves problemas de saúde desta mulher são perfeitamente passíveis de prevenção. Se ela tivesse tido acesso a testes de detecção, e se ela tivesse feito o teste do VIH mais cedo. E se...

Actualmente, morrem mais mulheres no mundo inteiro devido a cancro do colo do útero do que por complicações da gravidez e do parto. Em 2018, 311.000 mulheres morreram devido a este tipo de cancro e a maioria vivia em contextos de baixos rendimentos e limitado acesso a cuidados de saúde de qualidade por questões financeiras, culturais ou geográficas.

É estimado que aquele número aumente nos próximos anos. E, mesmo assim, o mundo permanece silencioso sobre estas mortes. E o pior é que as ferramentas de prevenção, incluindo a vacina contra o vírus do papiloma humano (HPV, na sigla em inglês) e tratamento como a crioterapia (congelação do tecido afectado no colo uterino), estão disponíveis e, no caso do último, a preços acessíveis.

Em Julho de 2019 estive no Zimbabwe, onde a MSF tem um programa de detecção e de tratamento do cancro do colo do útero em colaboração com o Ministério da Saúde. A detecção é feita em seis clínicas onde as mulheres também têm acesso a planeamento familiar, a testes de VIH e a tratamento, se necessário. As equipas examinaram 5751 mulheres no distrito de Gutu em 2019 e, agora, já chegámos a 75% das mulheres na região.

Levamos a cabo acções de promoção de saúde na clínica para que as mulheres façam o teste de detecção do vírus do papiloma humano, que realizamos com recurso a um teste laboratorial chamado VIA (inspecção visual do colo do útero com ácido acético). Nos casos em que os testes têm resultado positivo, é feito o tratamento das lesões pré-cancerosas com uma técnica conhecida como LEEP (Loop Electrosurgical Excision Procedure), que permite eliminar as células anómalas no colo do útero.

Tudo isto trouxe muito bons resultados. Ano após ano, mais mulheres fazem os testes e detectamos cada vez menos anomalias. Tal êxito deve-se a uma combinação de factores: mais mulheres são examinadas mais atempadamente, as nossas equipas desenvolvem acções de promoção e sensibilização em zonas mais remotas e os profissionais estão a ser mais bem capacitados para identificar anomalias. Sabemos também que o tratamento eficiente de VIH a longo prazo ajuda a eliminar espontaneamente lesões pré-cancerosas.

No ano passado, a MSF fez também uma campanha em Gutu de vacinação escolar contra o vírus do papiloma humano para meninas entre os nove e os dez anos, e forneceu vacinas para mil mulheres jovens e adolescentes VIH-positivas, com idades entre os 15 e os 26. Esta população de pacientes vulneráveis tem agora uma boa hipótese de protecção para toda a vida contra aquela doença mortal.

Ou seja: ao vacinar raparigas jovens e ao providenciar testes de detecção e tratamentos no local, estamos a dar mais do que uma esperança, estamos a evitar que o cancro do colo do útero se desenvolva, para que mais mulheres como Maura tenham oportunidade de sobrevivência. Mas muito mais ainda há por fazer.

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