Bem-vindos à era pós-digital

O fenómeno pós-digital relaciona-se com o fim do maravilhamento perante as novidades tecnológicas digitais. No entanto, não é uma negação da digitalização, muito pelo contrário.

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A quarta Revolução Industrial, a da digitalização da produção e da economia, pode ter começado há pouco tempo, mas uma nova era já se vislumbra para além dos píxeis. Começamos a sentir a redefinição de comportamentos que apontam para a pós-digitalização, mesmo que não nos tenhamos dado conta. A velocidade com que a tecnologia avança e a que a ela nos adaptamos não tem precedentes na história da humanidade, tanto que nem nos apercebemos das mudanças e comportamentos que adoptamos. A isto se soma a natural dificuldade em compreendermos a época em que vivemos, pela ausência do necessário distanciamento que permite uma análise histórica mais rigorosa. Então a era digital já terminou?

O fenómeno pós-digital relaciona-se com o fim do maravilhamento perante as novidades tecnológicas digitais. No entanto, não é uma negação da digitalização, muito pelo contrário. Esta mudança ocorre porque as tecnologias digitais passam a estar tão enraizadas que tendem a perder o efeito de revolução e deslumbramento, passando a ser uma nova normalidade. São usadas em massa, em todas as dimensões da nossa vida, banalizando-se por vezes.

O domínio do fenómeno digital gera reacções, ao ponto de procurarmos novamente os aspectos materiais que nos conectam à realidade. Então, a era pós-digital caracteriza-se pela aceitação da digitalização como algo inevitável e intrínseco, enquanto se valorizam também as experiências sensoriais provenientes das tecnologias materiais e analógicas. Aquilo que antigamente parecia ser obsoleto e estar desactualizado volta a ganhar interesse, mas de uma nova forma. Entramos nos modelos híbridos, em que se tende a conjugar tecnologias, aproveitando o melhor de cada uma delas, pelo menos em teoria. Na prática, estas tendências têm os seus perigos, mas também a história da nossa espécie nunca se fez sem eles. Apenas tendemos a esquecer colectivamente os receios do passado, pois são continuamente substituídos pelos anseios do futuro. 

Os revivalismos relacionam-se assim, de uma maneira especial, com a era pós-digital. Embora a estética vintage não seja de ignorar, estes movimentos tentam redescobrir o valor da materialidade, destacando o valor insubstituível das experiências físicas. Voltar a escrever cartas, ler livros em papel, ouvir discos de vinil, viajar até aos locais que podíamos conhecer à distância, assistir a espectáculos ao vivo, muitas formas de coleccionismo e até a tendência por jogar jogos de tabuleiro na companhia de outras pessoas são tendências crescentes. Mas fazemos isto sem desligar do mundo digital, aproveitando para partilhar e comunicar com comunidades de pertença cultural, que existem no mundo desmaterializado e que não se condicionam por fronteiras territoriais.

Podemos estar a escrever uma carta em papel, mas recorrer à ajuda da escrita inteligente do nosso smartphone. Podemos estar a jogar um jogo de tabuleiro, mas vamos consultar as regras e tirar dúvidas online. Podemos estar a ouvir um disco em vinil enquanto ligamos uma app que nos permite identificar a música que desconhecemos. Podemos viajar até ao local mais remoto do mundo, mas, assim que tivermos rede, vamos partilhar a fotografia nas redes sociais. E só fizemos aquele percurso porque conseguimos planear tudo digitalmente.

Podemos associar a tendência para a pós-digitalização a um reencontrar da nossa humanidade, carente da socialização presencial e de se expressar em contacto com objectos. A tecnologia digital surge, sem demonizações, como um amplificador desse mundo material onde existimos, mas que catapulta a nossa imaginação para outras esferas criativas e de significados ilimitados. A nossa espécie existe de corpo e alma, sendo a alma uma manifestação virtual que eventualmente poderá expressar-se na esfera digital, mas que não vive sem a materialidade dos corpos em movimento. Porque nós, mesmo existindo em mundos fictícios, sempre gostámos de viajar até aos limites da nossa imaginação, carregando os nossos objectos como extensão de nós mesmos.

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