Patrícia Lemos, a “educadora menstrual” que nos quer pôr a fazer perguntas sobre o período
Em 2010 criou um projecto para dar resposta às dúvidas e aos medos que as mulheres portuguesas têm em relação à menstruação e à fertilidade. Uma década depois, as mudanças de comportamento são uma realidade, acredita Patrícia Lemos, mas ainda há muito para fazer e muitos mitos para desconstruir.
“Não estão mal, mas precisam de aprender e de se questionarem mais”: o diagnóstico de Patrícia Lemos é sucinto, mas elucidativo. Assim estão os níveis de conhecimento que as mulheres portuguesas têm sobre a saúde menstrual. Para o justificar, baseia-se nas muitas horas que, ao longo dos últimos dez anos, dedicou a ouvir as dúvidas e os anseios de quem procura ajuda — maioritariamente mulheres ou casais com dificuldades em engravidar.
Apresenta-se como “educadora menstrual e instrutora de planeamento familiar de forma natural”. Trava, por isso, várias batalhas: contra as soluções protocoladas no que à pílula e à procriação medicamente assistida (PMA) dizem respeito, contra as aplicações de monitorização dos ciclos férteis, mas, acima de tudo, contra a desinformação. Em 2010 criou o Círculo Perfeito, para “desconstruir uma série de mitos e desinformação que ainda existem”.
Antes de aqui chegar, Patrícia, de 43 anos, passou por áreas de formação tão distintas como a Antropologia, a Gestão ou a Educação – esta última, garante, é a sua “grande paixão”. Ainda assim, foi só no decorrer do mestrado em Estudos sobre as Mulheres que o interesse pelo universo feminino começou a surgir. “A gravidez e a capacidade que a mulher tem de gerar uma criança fascinam-me”. Paralelamente, participou numa série de formações em hipnose clínica e terapia cognitiva comportamental, bem como numa especialização em acompanhamento à PMA que a levaram aos Estados Unidos e ao Reino Unido. Munida destas ferramentas, sentiu que estava preparada para avançar.
Começou por, “num âmbito terapêutico, prestar apoio às pessoas que estão a passar por dificuldades, no sentido de as poder aliviar ou encontrar recursos para que o caminho seja mais leve”. Acontece que muitas das pessoas com quem Patrícia se deparava eram casais perdidos ou “atropelados pelos protocolos de PMA, sem perceberem muito bem como é que ali tinham chegado”. “Não se questionavam: ‘o que é que diferencia a solução que me está a ser apresentada da solução que foi sugerida ao casal que acabou de sair?’.” A informação tinha-lhes sido transmitida de forma “muito rápida”, com recurso a explicações “altamente técnicas” ou “jargões clínicos”, o que os impedia de questionar, aferir ou até procurar outros métodos possíveis.
Para combater esta falta de conhecimento e, sobretudo, apresentar alternativas, Patrícia criou, então, o Círculo Perfeito. Inicialmente, o projecto foi disponibilizado em “formato workshops”, que desde o primeiro momento receberam uma grande aceitação e adesão por parte do público. “Esgotaram desde a primeira edição e continuam a esgotar”, admite Patrícia, orgulhosa.
No entanto, a educadora menstrual não demorou muito tempo a perceber que alguns ajustes tinham que ser feitos. Nem todos os que a procuravam se sentiam confortáveis com a ideia de partilhar as suas histórias pessoais com um grupo de desconhecidos – onde, na verdade, até poderiam estar conhecidos. A vergonha, a que Patrícia prefere chamar “estigma”, “é real, existe”. Para a desconstruir, criou-se no Círculo Perfeito uma nova forma de acompanhamento, o individual. “Um ambiente seguro, onde se pode discutir estas coisas que as pessoas carregam com elas durante dez, 20, 30 anos.” Quando esses mesmos casais regressam às sessões de grupo para “refrescar ou buscar mais informação”, Patrícia sabe que parte do seu objectivo foi cumprido.
Aos workshops esgotados e a uma agenda repleta no que a sessões individuais diz respeito, Patrícia Lemos, que vive em Lisboa, decidiu juntar a criação e gestão de uma conta de Instagram. Através dos posts que ali partilha diariamente, autênticos “shots de informação”, tenta, de uma “forma visual e assertiva”, resolver “questões essenciais” da cultura feminina, como é o caso da pílula do dia seguinte ou do historicamente consagrado hímen. “Não tenho muitas palavras para gastar, então decidi criar este formato, como se fosse uma ‘pílula que resolve tudo’, do género: ‘a menstruação é isto’, ‘os ciclos menstruais são assim’”.
Apesar das frases curtas que preenchem os “azulejos” que compõem o feed do Círculo Perfeito, todas as publicações são acompanhadas por textos longos com explicações detalhas e de base científica. O que à partida poderia parecer uma técnica de comunicação acaba por ser uma “forma de garantir que o público fica seleccionado à partida”. “É um convite a um público específico que lê, quer aprender, quer fazer perguntas. Se alguém não se dá ao trabalho de ler, então aquele conteúdo ainda não é para essa pessoa. Talvez deva voltar daqui a um ano. Quero muito apelar ao sentido crítico das pessoas”, acrescenta.
Além dos informativos, há outro tipo de conteúdos que são uma constante — e Patrícia não se cansa de os partilhar. São os “positivos”, que resultam do trabalho realizado nas sessões individuais, onde mulheres e casais são apresentados ao método natural de fertilidade.
Primeiro, há um e-book, disponibilizado gratuitamente online, que ensina a “observação dos três indicadores primários deste método”. São eles o muco vaginal, o colo do útero e a temperatura corporal. As mulheres devem aprender a monitorizá-los e a ouvir os sinais emitidos pelos seus corpos — apagar a app do telemóvel também pode ajudar, acredita. Caso não existam problemas de saúde no casal, nos casos em que o objectivo é efectivamente gerar um bebé, “a situação pode resolver-se em pouco tempo”. E, muitas vezes, sem a intervenção directa de Patrícia. Quando tal não acontece, o cruzamento dos indicadores permite perceber “o que está a falhar e eventualmente corrigi-lo”. “A parte do seguimento e das sessões de acompanhamento comigo passa por aprender a ler os gráficos e perceber qual a especialidade que pode dar resposta àquilo que identificamos, como problemas na tiróide, no colo do útero ou na cavidade uterina”, explica. Ainda assim, Patrícia opta por deixar uma ressalva logo à partida: “Estes processos não são compatíveis com os sentimentos de urgência e de pressa com que as mulheres andam hoje em dia”.
O período é “um barómetro de saúde, um sinal vital”
A mesma pressa que têm, ainda na adolescência, em verem resolvidos problemas associados ao aparecimento da menstruação e que acabam, na maioria das vezes, camuflados com a toma “acrítica e indiscriminada” da pílula, com a conivência de profissionais de saúde. “Pegar na pílula contraceptiva para resolver ciclos irregulares, hemorragias abundantes, dores ou acne parece-me preguiçoso”, prossegue. Segundo Patrícia, esperar que o corpo de uma jovem seja “um relógio da estação em que os comboios saem sempre à mesma hora” é uma ideia errada, já que este se encontra a meio de um processo de “maturidade neurofisiológica”.
A alternativa, defende, passa por “solucionar o problema na raiz, perceber de onde é que as dores vêm”. “As dores, as hemorragias abundantes ou os ciclos irregulares podem ser fruto do processo de amadurecimento. Mas, se no prazo de um ou dois anos, não estiverem resolvidos eventualmente teremos que estudar o caso para perceber o que se passa, já que pode haver situações de saúde a endereçar”. Para a educadora menstrual, só assim, numa “dinâmica de saúde”, será possível passar a ver o período como um “barómetro de saúde, um sinal vital”.
Nestas situações, a presença nas escolas de profissionais de saúde — algo que, sublinha, a própria não é — pode ser decisiva para que o período deixe de ser estigmatizado ou visto como algo que “só serve para fazer bebés”. Mas também para mudar a “autoridade das raparigas sobre o seu corpo”. Aqui, defende Patrícia, o foco desses profissionais tem de deixar de estar nas gravidezes adolescentes (e em como as evitar através da pílula), já que esta política pode resultar numa desvalorização do uso do preservativo. “A contracepção hormonal vai originar que a responsabilidade fique só nos ombros da rapariga. Muitas delas, quando o parceiro se recusa a usar preservativo, acham que por tomarem a pílula estão protegidas. Não estão. A grande pergunta que, enquanto sociedade, temos que fazer é: estamos a proteger as raparigas do quê? Da gravidez ou de questões que podem afectar a sua saúde?”
Patrícia questiona-se — as perguntas são uma constante no seu discurso —, mas a luta é para que os outros (especialmente as mulheres) se questionem também. Sobre as alternativas de que dispõem, sobre as opções que existem mas que não lhes foram apresentadas. Foi por e para isso que o Círculo Perfeito nasceu, para “educar as mulheres a fazerem perguntas, perguntas novas para, eventualmente, terem outras respostas”. Patrícia sente que algo está a mudar. O sucesso do seu projecto prova-o. “O desconhecimento é grande, mas é isso que faz com que cada vez me cheguem mais pessoas, não só mulheres. É sinal que há vontade de perceber, de querer aprender mais e melhor.”