A casa de José Saramago

Partilhar uma casa é um acto de generosidade e esse acto é ainda maior quando se trata da casa do José Saramago em Tias, na ilha de Lanzarote.

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Rafael Marchante/Reuters

Partilhar uma casa é um acto de generosidade. É um abraço, é dar parte de nós, dar a conhecer, é acolher e revelar sem pudores, é partilhar o que fomos, o que somos, é dar amor e afecto, cuidar, recolher, abrigar, alimentar, trazer para a família, dar uma família e compreender serem as duas famílias, a nossa e a vossa, e todas as famílias do mundo uma só.

Partilhar uma casa é um acto de generosidade e esse acto é ainda maior quando se trata da casa do José Saramago em Tías, na ilha de Lanzarote.

E, por isso, a casa é do José Saramago e não de José Saramago. Aqui não há espaço para deferências e somos todos iguais, igualmente merecedores de carinho, igualmente mortais, iguais sem culpa da estrada percorrida, limpos de pecados, apenas pessoas diante de uma porta aberta.

Chegar a Tías significa percorrer 45 minutos de litoral e praias de bicicleta e ter a aflição de não conseguir chegar a tempo. A casa está aberta durante a semana até às 14h30, mas quando se está de férias o mundo é feito para descansar e chegar sempre tarde, nunca a horas.

Mas é preciso chegar a tempo! E, por isso, largamos as bicicletas e pulamos para dentro do táxi que acabou de passar por nós. E, apesar de tudo, chegamos vitoriosos a casa e à casa de onde não devíamos ter saído.

A oliveira à entrada, a oliveira agora frondosa, veio do Alentejo nas mãos de Saramago e a oliveira é Portugal. Esticamo-nos para sentir o nosso país, cheirar o nosso país e sentimos, cheiramos, o sol é o mesmo, o calor também, estamos de volta a casa.

Entramos e tu dizes: “Um dia destes vamos ter uma parede cheia de livros!”. E para lá caminhamos. Livros para ler a nosso bel-prazer, palavras para tocar, viver e respirar com quem as escreveu, quem as escreve, e essa é a primeira impressão quando chegamos à casa do José Saramago: os livros eram tantos que não podiam caber numa casa só, foi preciso fazer outra, do outro lado da rua, para os acolher, amar, abraçar, ler. Não para expor, para ler, mexer, abrir o saber do mundo escrito em papel e em papel medi-lo, pesá-lo com as duas mãos e com os dedos percorrer todas as folhas todos os dias na certeza de haver sempre mais, mais livros e histórias, tantas quantas todas as pessoas do mundo.

Saímos da biblioteca, voltamos a percorrer os dedos na oliveira, atravessamos a rua e entramos na casa, simples, pouco mais de dois quartos, sala e cozinha e, no entanto, todas as pessoas entre artistas, políticos, pensadores, familiares, visitantes, amigos, o chão de tapete vulcânico à entrada como cinzas em chamas para purificar quem chega para ficar, os quadros nas paredes para contar as histórias dos homens e mulheres, os livros e os dicionários por detrás do computador por detrás da secretária de onde nasciam as obras e os personagens como água, a cópia do diploma do nosso único Prémio Nobel da Literatura na parede, as fotografias e as memórias de quem nos é mais querido, de quem lhe é mais querido, ter podido chegar ao céu sem sair da terra e uma casa só para poder contar tudo sem deixar de contar uma palavra que seja.

Deste modo, não deixa de ser natural a presença desta criança que o José Saramago nunca deixou de ser ao sol na varanda, a ler um livro enquanto os convidados conversam entre si, tomam um café ou passeiam pelo jardim onde palmeiras, sobreiros, olmos e romãzeiras descem para o mar por cima de um solo negro onde, apesar da incandescência, tudo cresce rodeado em oposição às paredes brancas da casa e casas em redor.

No horizonte, o mar ou o céu e o céu ou o mar são um livro azul por escrever, ainda à espera do José Saramago para contar a sua história. Enquanto este dia não chega, enchemo-nos de outros livros e outras histórias já escritas, enchemo-nos do José e das suas palavras e levamo-las connosco numa mala já demasiado cheia, mas onde ainda cabe uma vida, uma oliveira e a maior flor do mundo: a casa do José Saramago.

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