Tarrafal quer deixar de ser o “campo de morte lenta” para contar história da humanidade
Ministro da Cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, quer ver no Tarrafal uma “espécie de campo internacional de diálogo pela paz”. Candidatura a Património da Humanidade pela UNESCO avança em Março de 2021 e Portugal vai apoiar Cabo Verde na organização do dossier técnico.
O Tarrafal já foi campo de concentração onde portugueses, cabo-verdianos, guineenses e angolanos morriam lentamente, foi quartel e escola, mas 80 anos depois tem novo destino: um museu feito de pequenos museus para contar a história da Humanidade.
“A ideia é o campo de concentração ser um sítio no mundo que alberga e consegue contar a história de toda a humanidade. É essa a nossa candidatura à UNESCO”, começou por explicar o ministro da Cultura e Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, em entrevista à Lusa, no Tarrafal, na ponta norte da ilha de Santiago.
Em Março de 2021, garante, avança a candidatura do Tarrafal, que perde o peso do “campo de concentração” no nome, a Património da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, na sigla em inglês), para o transformar numa “espécie de campo internacional de diálogo pela paz".
Passará a receber exposições e música, projectos artísticos e editoriais de vários países e culturas diferentes, transformando um local outrora de tortura em vários pequenos museus que contam histórias semelhantes ao Tarrafal ao longo da história da Humanidade.
Para Abraão Vicente, o objectivo é levar à UNESCO um projecto que permita, no futuro, que todos os estudantes cabo-verdianos tenham no Tarrafal “um museu de visita obrigatória” e que a “Humanidade veja algo único” no local.
"Uma prisão internacional que se transformou e vocacionou para ser um centro de diálogo pela paz, reunindo aqui as experiências do mundo em termos de privação de liberdade, privação de pensamento, privação de expressão. E trazer aqui povos de todo o mundo para o diálogo”, conta.
Do Holocausto, à luta contra a segregação racial protagonizada por figuras como Martin Luther King ou Nelson Mandela, passando pelo extermínio do povo ruandês, são exemplos que Abraão Vicente aponta para os núcleos museológicos dedicados à história da Humanidade que poderão existir no futuro no Tarrafal.
“Que possam ter aqui um núcleo para o contar, isto tudo num país pacífico, onde, apesar de todos os problemas e todas as tricas, nunca ninguém pensou em pegar nas armas para os resolver”, enfatizou, acrescentando logo de seguida: “Temos aqui espaços suficientes para albergamos esses projectos museológicos”.
Apelidado de “campo da morte lenta”, o Tarrafal recebeu ao longo da sua história 340 antifascistas e 230 anticolonialistas. Destes, 37 morreram no local. “A marca vai ser Tarrafal e não campo de concentração ou ex-campo de concentração”, garantiu Abraão Vicente, desvendando outro ponto-chave da candidatura à UNESCO.
No local, as marcas de degradação das estruturas são evidentes, como nas celas comuns ou na cantina que descreve no interior como chegava a ser distribuída carne de corvos aos prisioneiros por falta de comida, por entre o capim que não para de crescer.
Entretanto, preparam-se para arrancar obras de reabilitação. Serão oito meses de trabalhos que antecedem a candidatura e que visam dar “autenticidade” ao local, como exige a UNESCO, até tendo em conta as funções, de quartel e escola, que o espaço assumiu após a independência de Cabo Verde, até ser convertido em Museu da Resistência, há 20 anos.
“O mais importante para a UNESCO é o que o país faz com o património que candidata, não é o seu passado negro, apenas ligado ao fascismo, à ditadura, o seu uso pós-independência”, explicou o ministro, que liderou o processo que terminou, em Dezembro último, com a classificação da morna, também pela UNESCO, como Património Imaterial da Humanidade.
"Contar a história do Tarrafal"
Situado na localidade de Chão Bom, o antigo Campo de Concentração do Tarrafal foi construído no ano de 1936 e recebeu os primeiros 152 presos políticos portugueses em 29 de Outubro do mesmo ano, tendo funcionado até 1954. Em 1962, foi reaberto com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado a encarcerar os anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
A candidatura prevê ainda a instalação de um núcleo museológico e de um centro interpretativo para também “contar a história do Tarrafal”.
O processo deverá acelerar a partir de 1 de Maio, data prevista para assinatura, no local, do acordo de cooperação entre Cabo Verde e Portugal, com vista à candidatura do Tarrafal a Património da Humanidade.
A data, explicou o ministro — que ainda este mês se reuniu em Lisboa para acertar com a ministra da Cultura de Portugal, Graça Fonseca, os termos do acordo — marcará “as balizas” da candidatura e da definição que Cabo Verde quer dar a este processo, contando para isso com o apoio, também como co-financiador, do Estado português.
“O campo de concentração foi construído por ordem do Estado de Portugal no contexto que todos nós sabemos. Não faria sentido Cabo Verde avançar com uma candidatura sem os recursos técnicos, mas também sem a participação científica, financeira de Portugal”, justificou.
Mas Angola e Guiné-Bissau, garantiu Abraão Vicente, também serão convidados a contribuir com a sua própria história neste processo, até a candidatura chegar a Paris. “Estamos também a perceber como é que Angola e a Guiné-Bissau podem entrar de uma forma mais concreta, já que Moçambique tem a sua própria história em termos de campo de concentração”, disse.
O então campo do Tarrafal só foi encerrado em 1 de Maio de 1974, após a revolução dos cravos em Portugal.
“Queremos dar amplitude de Humanidade ao Tarrafal: O que é que pode contar sobre o que já se passou na Humanidade, noutros povos, noutros países (...) Nesse sentido, este projecto ultrapassará Cabo Verde e Portugal”, rematou o ministro Abraão Vicente, antevendo o trabalho que se segue nos próximos 12 meses, até à entrega da candidatura na UNESCO.