}

Esquerda quer revogar cedência de obras ao Vila Galé, APOM apela à provedora de Justiça

Em causa está a decisão da secretária de Estado da Cultura que entrega a uma unidade daquele grupo hoteleiro parte da colecção Rainer Daehnhardt, adquirida pelo Estado e actualmente depositada no Museu Nacional dos Coches.

Foto
A ministra da Cultura Graça Fonseca com a sua secretária de Estado, Ângela Carvalho Ferreira ANTÓNIO COTRIM/LUSA

PCP e Bloco de Esquerda querem obrigar o Governo a recuar na polémica decisão que prevê a cedência de obras de arte de uma colecção pública depositada no Museu Nacional dos Coches ao grupo hoteleiro Vila Galé, no âmbito do Programa Revive. 

Na quarta-feira, o PCP anunciou que vai entregar na Assembleia da República um projecto de resolução que insta o Governo a reverter o despacho da secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural, Ângela Carvalho Ferreira. Na sua intervenção parlamentar, a deputada comunista Ana Mesquita – que já dissera ao PÚBLICO que "a forma como se está a naturalizar a cedência de património público a privados é muito preocupante" – classificou o “negócio” de “insólito, insulto, impensável e ilegal”.

Também o Bloco de Esquerda preparou um projecto de resolução que pretende revogar a cedência das obras da Colecção Rainer Daehnhardt para futura exposição na unidade hoteleira que aquele grupo vai abrir na antiga Coudelaria de Alter do Chão, no Alto Alentejo, ao abrigo de uma concessão do Estado. No preâmbulo do projecto, o grupo parlamentar bloquista recorda que o problema é mais vasto, e decorre da própria filosofia do Programa Revive, que não prevê “qualquer contrapartida pública sobre o património concessionado, nomeadamente garantias de acesso público, supervisão ou protecção do património intervencionado”, pelo que recomenda também ao Governo a suspensão deste programa.

“Após o anúncio do Programa Revive, em 2016, o Bloco de Esquerda apresentou nesse mesmo ano o Projecto de Resolução 543/XIII, onde propunha a suspensão do programa devido à total opacidade com que o património cultural tinha sido submetido ao Ministério da Economia (...). Das quatro propostas apresentadas neste projecto, PS e PSD uniram-se para chumbar a suspensão do programa e a inclusão de centros interpretativos nos cadernos de encargos. Ainda assim, foram aprovados os pontos 2 e 3, que definiam ‘a publicação de todos os documentos relevantes para cada concessão, nomeadamente: caderno de encargos; pareceres da Direcção-Geral do Património Cultural e Direcções Regionais de Cultura; correspondência trocada entre DGPC e municípios nas fases de projecto e obra; projectos arquitectónicos apresentados pelos concessionários’ (ponto 2), bem como ‘a definição e discussão pública das contrapartidas de cada concessão a realizar’ (ponto 3)”, lê-se no documento a que o PÚBLICO teve acesso. “Caso esta resolução aprovada por unanimidade tivesse sido respeitada, o primeiro parecer negativo à cedência de obras ao Grupo Vila Galé, de Agosto de 2019, teria sido conhecido seis meses antes do despacho onde a Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural decide a sua cedência ilegal”, argumenta o Bloco.

Invocando os argumentos usados pela directora do Museu Nacional dos Coches, Silvana Bessone – que, como o PÚBLICO noticiou há uma semana, reclamou do despacho da secretária de Estado por considerá-lo a vários títulos ilegal , os deputados lembram que “para além de as obras já estarem acessíveis ao público no Museu Nacional dos Coches desde a sua entrega à Direcção-Geral do Património Cultural em 2017, nem a cedência ao Grupo Vila Galé tem carácter temporário nem as condições de segurança e de conservação estão devidamente acauteladas”.

Também a Associação Portuguesa de Museologia (APOM) decidiu agir, tendo solicitado a intervenção “urgente” da provedora de Justiça relativamente a um despacho “ilegal” que compromete “a protecção e salvaguarda do património cultural e a missão dos museus nacionais”, lê-se na carta enviada à provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, à qual a agência Lusa teve acesso. A associação pede à provedora que diligencie junto do Ministério da Cultura “no sentido de corrigir um acto prejudicial para a imagem dos museus portugueses e para a sua missão, por forma a tutelar o interesse difuso de protecção e salvaguarda do património cultural português”.

Na sua carta à provedora de Justiça, a APOM recorda que “os bens culturais requisitados pertenciam à Colecção Rainer Daehnhardt" e cita o auto de entrega, recepção e afectação de Bens Móveis datado de 9 de Abril de 2018, que afecta as referidas obras “à Direcção-Geral do Património Cultural [DGPC], para exposição permanente no Museu Nacional dos Coches”, ao qual ficou confiada “a sua guarda e conservação”.

As condições de exposição no museu público foram aceites pela DGPC, sublinha a APOM, acrescentando que os bens culturais das colecções nacionais “só podem ser objecto de cedência a entidades públicas ou privadas de acordo com a Lei n.º 47/2004”, isto é, “observando sempre as boas práticas museológicas e de uma forma tecnicamente fundamentada”.

Para a APOM, “não é possível aceitar que o Hotel Vila Galé, onde serão expostas as peças do Museu Nacional dos Coches, tenha ou passe a ter, depois da cedência, uma actividade museológica em função da sua actividade principal, em tudo legítima, mas incompatível com a protecção, salvaguarda, estudo e exposição de bens culturais museológicos”.

A associação considera que o despacho de Ângela Ferreira “representa um grave precedente”, uma vez que “contraria as regras da competência própria dos directores de museus, recentemente aprovadas pelo regime jurídico de autonomia de gestão dos museus, monumentos e palácios, no que respeita à gestão de colecções”.

“O despacho parece ter ultrapassado as competências delegadas” na secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural pela ministra da Cultura, argumenta ainda a APOM.

A associação lembra ainda que a directora do Museu Nacional dos Coches “considerou que a ordem da secretária de Estado seria ilegal e solicitou a sua confirmação por escrito, dando, no entanto, cumprimento ao referido despacho, faltando, neste momento, a assinatura de um protocolo entre a DGPC e a Sociedade Vila Galé, S.A. para a concretização da transferência das peças “requisitadas”.

A APOM manifesta “a maior preocupação” pelas consequências da “cedência dos bens culturais, que foram autorizados a serem expostos nas zonas públicas de um empreendimento turístico”. Recorde-se que, em declarações feitas à agência Lusa na semana passada, a secretária de Estado Ângela Ferreira adiantou que a cedência de obras de colecções públicas a privados é uma experiência que poderá vir a repetir-se no âmbito do Programa Revive, embora as condições ainda não estejam totalmente definidas.