Por uma justiça arbitral mais transparente
Os tribunais arbitrais, que exercem um poder público judicial delegado pelo Estado, produzem decisões “ocultas”, quando o Estado de Direito Democrático, por definição, atua com base no princípio da transparência.
1. O crescimento da justiça arbitral em Portugal não tem acontecido sem controvérsias e dificuldades. Ora por razões ideológicas, ora por razões técnicas, tem sido grande o coro de vozes que se vai manifestando contra a multiplicação dos tribunais arbitrais privados.
Sempre fui favorável à justiça arbitral, que tem inegáveis virtualidades na rapidez e na competência das suas decisões. E até pode ser um complemento de uma justiça estadual que só se beneficia com um diálogo jurídico-científico alargado propiciado pela presença de juristas que, circunstancialmente, são chamados a ser também juízes.
2. Porém, é de reconhecer que os processos arbitrais suscitam dificuldades de legitimação: para além da “indústria da arbitragem” que vai florescendo (há escritórios com “departamentos” para o assunto), a ausência de escrutínio sobre a escolha dos árbitros (alguns profissionais forenses não fazem outra coisa senão “arbitrar” em circuito fechado…), a excessiva liberdade na fixação das suas remunerações ou a discricionariedade – dita “equitativa” – na definição do direito aplicável.
Tudo isto para já não falar dos escândalos que se sabe no plano da justiça arbitral internacional, na qual o capitalismo selvagem global encontrou mais um esteio seguro para aniquilar a soberania dos países mais pobres, impondo mecanismos arbitrais que os desfavorecem em face do poderio das grandes multinacionais.
3. Este não é um assunto novo em Portugal, mas tarda em ser encarado, ainda que os tribunais arbitrais estejam previstos na Constituição.
Mas a sua constitucionalização é “mínima” porque ela é apenas um “cheque em branco”, ficando ao alvedrio do legislador processual ordinário dizer o que bem entender sobre o assunto.
Lendo a Constituição, ficamos com todas as dúvidas sobre o enquadramento da justiça arbitral: em que casos pode suceder, qual o direito aplicável, que competências devem ter os juízes arbitrais ou qual o procedimento da sua escolha e a deontologia a que se devem sujeitar.
4. Mas talvez o maior dos seus problemas seja a escassa transparência da justiça arbitral, na certeza de que a transparência é um princípio fundamental do Estado de Direito Democrático.
É certo que a nova legislação se mostra mais preocupada com a prevenção de conflitos de interesses, sendo prolixa na imposição de deveres de declaração dos mesmos.
Só que depois entra na profunda contradição de permitir o segredo das decisões arbitrais, não havendo qualquer dever de as publicitar, nem mesmo sequer de as depositar nos tribunais estaduais.
Contra o que antes se estabelecera, a recente Lei da Arbitragem Voluntária foi um retrocesso inimaginável, ao deixar de impor o depósito de tais decisões nos tribunais judiciais.
E se, por vezes, os regulamentos de alguns centros de arbitragem até permitem a publicação das suas decisões, a verdade é que, na esmagadora maioria dos casos, as decisões não são publicadas porque esses mesmos regulamentos tiram com a “mão esquerda” aquilo que haviam dado com a “mão direita”: admitem que as partes se oponham a tal publicação, tal sucedendo em 95% dos casos…
A principal exceção são as decisões arbitrais administrativas, embora o respetivo comando legal esteja à espera de uma portaria do Governo, sem a qual se impede o cumprimento de tal dever de publicidade. Outra boa exceção é o CAAD, que as publica sempre.
5. Onde reside a gravidade do problema em termos de Estado de Direito Democrático, numa omissão de transparência que se apresenta manifestamente inconstitucional?
Reside no facto de assim a comunidade ficar impedida de, democraticamente, avaliar o que se passa nos processos arbitrais, não se podendo indagar acerca da idoneidade dos árbitros, cuja aferição fica confinada ao âmbito da intimidade intersubjetiva das partes intervenientes.
Pior: os tribunais arbitrais, que exercem um poder público judicial delegado pelo Estado, produzem decisões “ocultas”, quando o Estado de Direito Democrático, por definição, atua com base no princípio da transparência, assim se vedando o acesso de todos a decisões com carácter final e muitas vezes irrecorríveis, trazendo as mais gravosas consequências sobre os direitos e os interesses dos cidadãos.
Redesenhando o famoso lema realista do grande Eça de Queirós, “Sobre a nudez forte das decisões arbitrais, o manto opaco dos inconfessáveis segredos que não se quer que alguém saiba…”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico