Plácido Domingo assumiu “toda a responsabilidade” pelos seus erros e o seu nome tornou-se tóxico em Espanha
Os dois mais importantes teatros de ópera de Madrid cancelaram as actuações do cantor após as suas declarações.
O tenor espanhol Plácido Domingo, acusado nos Estados Unidos de assédio sexual por vinte mulheres, pediu esta terça-feira desculpas pelo sofrimento que lhes tenha causado. “Quero que saibam que sinto sinceramente o sofrimento que causei. Aceito total responsabilidade pelas minhas acções”, disse o tenor de 79 anos, que até agora sempre negara firmemente as acusações.
Estas declarações estão a ser lidas como uma reacção à investigação conduzida pelo AGMA (sigla inglesa de American Guild of Musical Artists), sindicato norte-americano que representa os artistas ligados à música, que acaba de concluir que 27 mulheres, e não 20, foram alvo da “conduta sexual inapropriada” do tenor espanhol ou foram dela testemunhas.
Os depoimentos recolhidos pelo AGMA, sindicato de que o tenor fez parte durante meio século, dizem respeito a factos ocorridos ao longo de 20 anos nas óperas de Los Angeles e Washington.
Recorde-se que em Agosto a Associated Press (AP) publicara uma investigação em que nove mulheres alegavam ter sido assediadas pelo cantor no final dos anos 80. A mesma agência noticiosa voltara à carga em Setembro, garantindo que outras 11 mulheres se apresentaram também como tendo sido vítimas do histórico cantor lírico.
No comunicado de imprensa divulgado esta terça-feira pela agência espanhola Europa Press, Plácido Domingo afirma “ter pensado nos últimos meses nas acusações” e diz “compreender agora que algumas dessas mulheres podem ter medo de se expressar honestamente porque temem que as suas carreiras sejam afectadas”.
Este reconhecimento não implica, no entanto, que o cantor lírico e maestro sinta ter tirado proveito dos cargos que exerceu, acrescentaram fontes que lhe são próximas, citadas pelo diário espanhol ABC. Domingo acredita que não exerceu qualquer tipo de “abuso de poder”: “Jamais o fiz nem prejudiquei ninguém, bem pelo contrário”, assegurou.
O pedido de desculpas de Plácido Domingo chega no dia seguinte à decisão do júri de Manhattan de considerar o produtor de cinema Harvey Weinstein culpado de agressão sexual e estupro, veredicto aplaudido pelo movimento #MeToo.
Governo espanhol toma posição
Após as acusações de assédio sexual, Plácido Domingo deixou em Outubro a direcção da Ópera de Los Angeles, cargo que ocupava desde 2003. O tenor e maestro também desistiu de se apresentar na Ópera de Nova Iorque, enquanto outras óperas americanas cancelaram as suas actuações. Continuou, no entanto, a apresentar-se em vários palcos europeus. Não é ainda claro de que forma a investigação do sindicato dos músicos americano, que concluiu que Domingo se envolveu em “actividades desadequadas, que vão do flirt a avanços sexuais indesejados, dentro e fora do local de trabalho”, virá a afectar a sua agenda de concertos.
Mesmo que as conclusões desta investigação do poderoso AGMA ainda não tenham sido divulgadas na íntegra, a Ópera de Hamburgo já fez saber que mantém em cartaz o tenor no elenco de Simon Boccanegra, prevendo-se que cante neste palco alemão a 22 e 26 de Março, e a 2 de Abril. A Royal Opera House de Londres, onde Plácido Domingo deverá ser a estrela de Don Carlo, de Verdi, de 29 de Junho a 19 de Julho, também ainda não fez qualquer alteração à sua temporada de Verão nem se prevê que venha a fazer.
Nos dois principais palcos de ópera de Madrid, os teatros Real e da Zarzuela, imperava até meio da tarde desta quarta-feira o silêncio, ainda de acordo com o ABC. Mas, entretanto, as coisas mudaram radicalmente. Um comunicado do Instituto Nacional de Artes Cénicas e da Música espanhol fez saber que as actuações do tenor previstas para os dias 14 e 15 de Maio na Zarzuela tinham sido canceladas. “A gravidade dos actos” associada às declarações de Plácido Domingo em que assume “plena responsabilidade pelas suas acções”, e a “solidariedade para com as mulheres afectadas” justificam a decisão, pode ler-se no documento deste organismo afecto à Cultura.
Pouco antes, o próprio ministro da Cultura e Desporto, José Manuel Rodríguez Uribes, aqui citado pelo diário El País, explicara o porquê desta tomada de posição: “Até agora a situação era diferente, havia uma presunção de inocência, mas a partir do momento que ele diz que se passou o que se passou, com actos graves que afectam numerosas mulheres, decidimos que não poderíamos continuar a contar com ele e comunicámos-lhe essa decisão. Parece-me que, mais do que um gesto de solidariedade para com essas mulheres, é um dever. Ele mesmo disse que deviam ser-lhe atribuídas todas as responsabilidades.”
Entretanto, e já na manhã desta quinta-feira, o cantor antecipou-se à tomada de posição do Teatro Real (esperava-se uma declaração às 11h) e cancelou a sua participação como protagonista na ópera La Traviata, em que estava previsto actuar no dia 9 de Maio. O Teatro Real tinha pedido uma cópia do relatório com as conclusões da investigação do AGMA para decidir se Domingo subiria ao palco. Pouco depois, um comunicado do Teatro Real explicava a cronologia dos acontecimentos: “A Comissão Executiva do Teatro Real reuniu-se hoje [esta quinta-feira], com o objectivo de decidir o que fazer após as declarações de Plácido Domingo em que este reconhece e lamenta os danos que causou a algumas mulheres nos Estados Unidos e lhes pede perdão. Horas antes da reunião, foi dado a conhecer um novo comunicado em que Plácido Domingo renuncia a cantar no Teatro Real na próxima produção de La Traviata. O Teatro Real, por sua vez, reafirma a sua política de tolerância zero perante os assédios e os abusos de toda a índole, e a sua permanente solidariedade com as vítimas. Também confirma que Plácido Domingo não vai participar na próxima produção de La Traviata que se estreia em Maio.”
Também o Palau de Les Arts de Valência decidiu entretanto retirar o nome de Plácido Domingo do seu centro de formação, que passará a chamar-se Centro de Aperfeiçoamento Palau de Les Arts, e renunciar a quaisquer “possíveis relações contratuais futuras” com o cantor, noticiou o El País, citando o lacónico comunicado da instituição. O tenor era o principal embaixador da ópera valenciana desce a sua inauguração em 2005, lembra o diário espanhol, acrescentando que a sua primeira actuação em Espanha após o escândalo provocado pelas denúncias de abuso sexual se deu precisamente em Valência, com o Nabucco, de Verdi.
“Toques físicos não solicitados que iam desde beijos na boca a apalpões, telefonemas nocturnos em que pedia às mulheres que fossem ter a sua casa ou convites para sair com tamanha persistência que fazia com que se sentissem acossadas”, estão entre os comportamentos de que o tenor é acusado. Duas das mulheres que falaram com a AP, e muito provavelmente com a equipa da advogada encarregue da investigação pela Ópera de Los Angeles, Debra Wong Yamg, admitiram ter mantido relações sexuais com Plácido Domingo por se sentirem a isso forçadas pela sua “posição de autoridade”, temendo que prejudicasse as suas carreiras caso dissessem “não”.
Plácido Domingo é casado com a soprano Marta Ornelas, a sua segunda mulher, desde 1962.