Esquerda fracassa tentativa de suspender despejos por 90 dias no Porto
Moratória proposta pela CDU teve o voto favorável do PS, mas foi reprovada pela maioria de Rui Moreira e PSD. Matriz da habitação social vai ser revista, mas abrir portas a mais gente criaria situação de “absoluta ingovernabilidade”, aponta autarca.
Ao gabinete de atendimento de Ilda Figueiredo chegam cada vez mais casos de despejos entre moradores de casas sociais. Para travar esse “drama”, e com um apelo especial à “sensibilidade social” dos presentes, a vereadora da CDU levou à reunião de Câmara do Porto desta segunda-feira uma proposta de suspensão de despejos onde estejam envolvidos menores, pedindo que os mesmos voltem a ser analisados após uma alteração do regulamento do parque habitacional e da matriz. A moratória, que por proposta do socialista Manuel Pizarro definiu 90 dias como tempo de duração, acabaria reprovada pela maioria do movimento de Rui Moreira e um voto do PSD.
Parte das vinte situações conhecidas pelos comunistas – número que acreditam pecar por defeito e estar em crescimento –, “resultam de casos mal resolvidos pela Domus Social”. Isto porque a empresa municipal “não aceitou reagrupamentos familiares e não tem em conta a situação de crianças em risco de separação de famílias e de interrupção do ano escolar com todas as suas trágicas consequências”.
São casos de “mães solteiras com filhos menores, pessoas com doenças crónicas ou portadoras de graves deficiências ou ainda de familiares com problemas com a justiça”, relatou Ilda Figueiredo. E as histórias nunca têm um final feliz: “As pessoas de baixos rendimentos não conseguem arrendar casa a preços compatíveis com os baixos salários ou baixas pensões, o que poderá aumentar o número de famílias sem-abrigo e colocar crianças numa situação de grave vulnerabilidade.”
O debate estava só a começar. Andreia Júnior, que substituiu o vereador Álvaro Almeida em representação do PSD, considerou confusa a proposta da CDU, por juntar despejos e alteração da matriz no mesmo saco. “Não podemos permitir tudo”, afirmou, sublinhando que a habitação social é apenas “para quem é mais necessitado”. Apesar de não ser contra a revisão da matriz – algo que está mesmo a ser feito e deverá ser ali debatido já em Abril ou Maio – e de admitir a existência de “casos graves”, a social-democrata não vê sentido, por exemplo, na descriminação positiva de famílias monoparentais. “Não é pelo caso de serem mães solteiras que é pior.”
Rui Moreira ligou o microfone para fazer aquilo a que chamou “nota a título pessoal”. Para o autarca, todos os casos “têm vínculo a uma tragédia” e apelam a “emoções e sentimentos” – mas tal não deve resultar em análises individuais. Apoiando-se na posição do PCP em relação à eutanásia, que na semana passada voltou contra os cinco projectos-lei na Assembleia da República, Moreira dirigiu-se directamente à vereadora comunista: “Tem de se olhar para o quadro todo.”
O presidente da câmara quis ilustrar a ineficácia de cuidar de circunstâncias individuais com o caso de Paula Gonçalves, que a poucos dias de sair em liberdade condicional, há cerca de um ano, foi despejada pela autarquia da sua casa no bairro do Lagarteiro - e motivou a solidariedade de dezenas de cidadãos contra aquilo que consideraram um “despejo cruel”. Para Rui Moreira, a decisão de a portuense ter ficado no Brasil ilegalmente depois de uma viagem autorizada por alguns dias, estando neste momento, segundo o Jornal de Notícias, a ser procurada pela Interpol, é prova de que “os serviços estavam a tratar [o caso] como deviam tratar” quando a deixaram sem tecto após cumprir a sua pena.
Manuel Pizarro admite que a habitação é um assunto “delicado”, mas pediu um debate onde não esqueça o contexto de uma cidade que viu cair os níveis de desemprego, mas quase deixou de ter uma “alternativa à habitação existente na câmara”. E o Porto Solidário - programa que apoia o pagamento de rendas ou empréstimos bancários e vai aumentar o seu orçamento para dois milhões, prevendo apoiar 1000 famílias - não basta. “Não é verdade que se pode arrendar porque o município apoia, porque não há alternativas.”
Ilda Figueiredo considera haver uma “interpretação muito restritiva das normas” por parte da Domus Social, nomeadamente no 14º artigo do regulamento, onde se elencam os casos de excepção, como situações de emergência social, tecto para vítimas de violência doméstica ou cidadãos gravemente doentes. Sublinhando por diversas vezes não culpar a autarquia pelo grave problema de habitação vivido no Porto e apelando à responsabilidade do Governo, a comunista não deixou de dizer que há, a nível local, mais a fazer. E não deixou Andreia Júnior sem resposta: “Se fosse mãe solteira, com um salário mínimo e filhos menores ia perceber porque falo delas. Não entender esta situação revela um distanciamento da realidade da cidade.”
Sem resistir à tentação de levar à reunião casos concretos, algo que é, por norma, evitado, Ilda Figueiredo comentou, sem nunca nomear, o caso de despejo de uma inquilina municipal na Ribeira, mãe solteira com dois menores a cargo, por quem já circula uma petição. Com uma advertência por falar de gente ausente da reunião, apesar de ele próprio ter nomeado antes o nome de Paula Gonçalves, Rui Moreira foi objectivo: “Abrir a matriz só faz sentido se aumentarmos o stock”. E isso, tem dito por diversas vezes, não é uma aposta do executivo.
“Fará sentido, demagogicamente, flexibilizarmos? Pesará sobre nós o ónus de criar uma situação de absoluta ingovernabilidade.” As casas, interveio o vereador da habitação, são hoje um “bem raro” e, por isso, devem ser tratadas com “parcimónia”. Apesar disso, realçou, a autarquia entregou 327 casas em 2019. O “drama” actual é já diferente do existente em 2013, quando Rui Moreira assumiu os destinos da autarquia. Há menos desemprego, “mas o fruto do trabalho não diminuiu a pobreza”. Ainda assim, aferiu, sublinhando aquilo que Rui Moreira já havia dito, “é preciso olhar para a totalidade da realidade”. E pedir contas a outros destinatários: Que responsabilidade cabe à Segurança Social? E o que é feito das casas do IHRU?
Sem moratória aprovada, passou-se a outros debates. Mas a reunião acabaria duas horas depois, ironicamente, tal como começou. No período dedicado aos cidadãos, os quatro presentes relataram os seus dramas aos vereadores. Todos relacionados com habitação.