Esoterismo na Justiça Portuguesa? Não, obrigada…

As constelações familiares são uma dinâmica terapêutica sem qualquer validade científica. Ainda assim, “o caminho das estrelas” vai ditando a “má sorte” de algumas famílias em conflito.

Sabe o que são constelações familiares? E sabe que há tribunais em Portugal que recorrem a esta metodologia para decidir os destinos das crianças?

As constelações familiares são uma dinâmica terapêutica sem qualquer validade científica, e chegaram à Justiça sob a forma de apelo a uma conceção de “Direito Sistémico”, onde surgem como método de mediação alternativa na resolução de conflitos, em particular no Direito da Família.

O modelo consiste em colocar em confronto pessoas que estão em conflito, na presença de um “constelador”, fazendo representar igualmente outros membros da família, até se descobrirem os elementos disfuncionais e a “raiz do conflito”.

Traduzindo, se determinada pessoa é agressiva em contexto familiar, procura-se a raiz dessa agressividade no quadro da transmissão genética geracional, concluindo-se que essa agressividade pode ser recebida p. ex. do avô ou da avó, que por sua vez também era uma pessoa agressiva, e assim se explica, quase que legitimando, o comportamento violento de alguém. Mas não ficamos por aqui. Vejamos o exemplo de uma vítima: uma pessoa pode ser vítima num conflito familiar e descobrir, através desta dinâmica, que o é porque já a sua bisavó, avó e mãe também o eram, e que ser vítima é um comportamento quase viciante, uma vez que pode trazer vantagens à pessoa.

Não são palavras nossas, mas sim as teorias avançadas por Bert Hellinger, filósofo, teólogo e pedagogo que iniciou o movimento das constelações familiares, e para quem as “ordens do amor” resolvem conflitos, e através delas a humanidade encontra o equilíbrio. E o que são estas “ordens do amor”? A pertença de uma pessoa à sua família, independentemente das suas ações e das punições morais e legais; o respeito (ou a reverência) por quem chegou primeiro, isto é, pelas pessoas mais velhas no ordenamento familiar, e que sustentam “as forças da vida”; e a “ordem de equilíbrio”, que pressupõem que “o dar e o receber” respondem a uma hierarquia.

A aplicação prática desta “criação” assenta na premissa falaciosa e cega de “manter a família unida” quando há um conflito, desprotegendo assim pessoas que vivem num seio familiar violento.

E que família é esta, que serve de modelo às constelações familiares? É um conceito de família heteronormativa, que pressupõe uma hierarquia e em que as crianças são submissas relativamente aos adultos. Acresce que há a crença, sem qualquer fundamento científico, de que o DNA das pessoas carrega moléculas emocionais e comportamentais dos antepassados.

Defendem ainda os percursores deste movimento nos tribunais de família que, em face da incapacidade do poder judicial para dirimir conflitos, as constelações familiares podem fazê-lo – quais soluções diretamente lidas das estrelas! –, evitando até que, em última instância, seja necessária uma sentença.

A Ordem dos Psicólogos Portugueses, num parecer de Junho de 2019, pronunciou-se no sentido de que “as constelações familiares não constituem um modelo terapêutico reconhecido pelas ciências psicológicas”. Ainda assim, e de forma alheada a qualquer valoração científica, “o caminho das estrelas” vai ditando a “má sorte” de algumas famílias em conflito.

Ora, a prática deste modelo nos nossos tribunais põe em causa princípios e regras fundamentais do nosso ordenamento jurídico, desacreditando aliás o papel do Direito na resolução de conflitos. Subverte todo o processo e dinâmica de transformação das famílias que os dados sociológicos nos atestam, esses sim com validade científica.

O acolhimento judicial destas práticas implica o retrocesso de anos de investigação e conquistas quase civilizacionais no domínio do Direito da Família, e em particular no Direito das Crianças. Desprotege vítimas. Põe em causa a proibição da mediação familiar em contexto de violência doméstica. Aceitá-lo, sem questionar, não abona a favor da Justiça. Porque o Direito não é esotérico e porque, apesar das convicções pessoais de cada um, reconhecemos a validade e substância dos princípios e regras vigentes num Estado de direito. Ao Direito esotérico dizemos “não, obrigada!”.

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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