Dou a vida pelo meu país e em troca só me pagam o salário
Em democracia, ser político não é um sacrifício. Na melhor das opções, é um serviço público; na pior, é puro exercício de poder. Contagiados pelo espírito sofredor português, os sindicatos copiam os políticos e desbaratam o argumento do sacrifício. Agora foi a vez dos estivadores.
Lembra-se do argumento do primeiro presidente da Iniciativa Liberal para explicar a demissão do cargo?
Uma ajuda: “Não me podem pedir mais. Não me podem pedir que continue a sacrificar a minha vida por uma causa.”
Sacrifício é outra coisa. Não falo do sacrifício bíblico e de como no nosso imaginário — crente ou ateu — é impossível imaginar sacrifício maior do que aquele que Deus pediu a Abraão: mata o teu filho Isaac com uma faca.
Nem falo dos milhares de crianças sacrificadas ao longo dos séculos em nome de deuses que a seguir caíram no esquecimento. Há muitos rituais conhecidos, como o das 50 mil virgens sacrificadas por ano para apaziguar o deus asteca Huitzilopochtli, mas a história do sacrifício continua a ser escrita. No Peru, uma equipa de arqueólogos acaba de revelar os esqueletos daquilo que a revista Discover descreve como “o maior sacrifício em massa de crianças” jamais descoberto no continente americano. Desconhecia-se que o Império Chimu (séculos XI-XV) sacrificava crianças. Num cemitério à beira-mar, os arqueólogos desenterraram esqueletos de 137 crianças entre os 5 e os 14 anos, três adultos e 200 lamas bebés — os ossos do peito das crianças estão esmagados da mesma forma, o que indica a possibilidade de o coração lhes ter sido arrancado em vida. Está a ver aquela cena terrível do Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida? É isso na vida real.
Mas podemos ignorar a História. Para falar de sacrifício, basta pensar nos jovens de Hong Kong que dizem — hoje — estar dispostos a dar a vida para lutar pela democracia. Entre Junho e Dezembro, foram presos 2383 estudantes. “Quero dar tudo o que tenho a Hong Kong. Quando lutamos pela liberdade, os sacrifícios são inevitáveis”, disse, há umas semanas, um adolescente a um repórter. “Estamos a meio caminho do Inferno. Pomos o nosso futuro e a nossa carreira em risco, mas vale a pena.” Ou podemos pensar na Guiné Equatorial, onde os presos políticos são torturados na prisão Black Beach e mal saem criticam o regime de forma aberta e frontal.
Sempre me intrigou a forma como em Portugal se abusa da palavra “sacrifício”, desrespeitando a língua e a História. Em democracia ser político não é um sacrifício. Na melhor das opções, é serviço público; na pior é puro exercício de poder. E alguém se lembra de uma “causa” defendida num horário das nove às cinco?
Contagiados pelo espírito português do sofredor em privação, os sindicatos copiam os políticos e desbaratam o argumento do sacrifício. Agora foi a vez dos estivadores. Na nota a anunciar a greve que começou esta semana, como resposta à proposta de redução salarial e o fim das progressões automáticas de carreira, um sindicato disse que os patrões estão a ferir a “dignidade de quem dá tudo o que tem — às vezes a própria vida — para abastecer a população, o comércio e a indústria da capital e do país”.
Não debato hoje se têm ou não razão, nem o problema gravíssimo dos salários em atraso — não é isso que discuto. Questiono o argumento: os estivadores dão “tudo o que têm” para fazer o seu trabalho? Não têm férias e dias de descanso? Não têm salários acima da média, não só acima de outros operários especializados, mas também de profissões essenciais e complexas como os médicos, os professores, os juízes, os polícias ou os cientistas?
Há uns anos, a Confederação dos Sindicatos Marítimos e Portuários revelou a tabela salarial ao Jornal de Negócios. Como os sindicatos dizem que não são aumentados há 27 anos, suponho que continua válida: vão de 1046,72 euros por mês para um estagiário a 2323,06 euros para um superintendente no Porto de Lisboa, ao que é somado o subsídio de alimentação (10,05 euros), transporte (54,99 euros) e diuturnidades (24,75 euros), e as horas suplementares, entre os 16,64 euros para um estagiário em fins-de-semana e os 315,75 euros para um superintendente num horário nocturno. Números redondos, escreve o Negócios, os salários são entre “2400 e 4000 euros”.
Em 2016, no fim de uma greve de 37 dias, o Diário de Notícias fez novo levantamento dos salários. Nessa altura, os estivadores tinham acumulado, em cinco anos, 441 dias de greve no Porto de Lisboa, dias inteiros ou turnos extra, nunca é claro. Queixavam-se de salários em atraso, das horas mal pagas e da incerteza dos “eventuais”, tudo questões sérias. O salário base eram os mesmos 1046 euros, “só podendo o trabalhador ficar nesta categoria durante um ano”, ao fim do qual é promovido para o escalão seguinte, onde ganha 1443 euros. Lembra-se dos protestos em frente à escadaria da Assembleia da República no qual homens identificados como estivadores atiraram pedras aos agentes da PSP, que usam o mesmo argumento do sacrifício para lutar por melhores salários?
Ao ler os argumentos dos vários lados parece que entramos num labirinto coberto por alçapões. Os patrões dizem que há “vários” estivadores a ganhar cinco mil euros por mês e “casos pontuais” que recebem “7900 euros por mês”, mais subsídio de férias e de Natal. Os sindicatos falam em “campanha negra”. Uns queixam-se de que as greves estão a matar os portos portugueses, os outros queixam-se dos salários baixos, dos recibos verdes e da imposição de horários pesados. Haverá menos de mil estivadores. Estamos a falar de quantas pessoas injustiçadas?
Os dois poderão ter razão em muito do que defendem. Os estivadores têm um trabalho duro e ganham acima da média. Estão em greve a lutar para manter o que têm e melhorar o que não têm. Isso basta para negociar. É inútil o choro patriótico do sacrifício que fazem para “abastecer a população”. Os portugueses, também eles absorvidos nos seus sacrifícios — reais ou míticos —, ouvem e ignoram.