O vício da raspadinha: como evitar o aumento de casos de jogo patológico?

O perfil epidemiológico do jogador em todo o mundo está a mudar e as raspadinhas surgem como uma das principais fontes de viciação. O que se pode fazer para evitar isso? Ensinar probabilidades em Matemática ou instituir um “cartão do jogador”.

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SEBASTIAO ALMEIDA

Um “cartão de jogador”, apostar no ensino da Matemática e maior protecção para jovens e idosos são as ferramentas que faltam para que se evite o aumento de novos casos de jogo patológico das raspadinhas, de acordo com três especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Um estudo publicado nesta sexta-feira na revista The Lancet Psychiatric mostra que, em média, cada português gasta 160 euros por ano em raspadinhas, um número muito superior ao de outros europeus.

O problema da raspadinha é a facilidade de acesso. Estão em muitos locais”, começa por dizer Pedro Morgado, psiquiatra no Hospital de Braga e um dos co-autores do estudo publicado esta sexta-feira, em conjunto com Daniela Vilaverde. E “ao contrário do que acontece com outros jogos, como os jogos de casino, é impossível as pessoas auto-excluírem-se” dos locais onde compram as raspadinhas. No entanto, é possível torná-las menos acessíveis e alertar para os seus perigos

Em primeiro lugar, é preciso apostar na promoção do jogo responsável, alertando para os primeiros sinais de jogo patológico e reduzindo a exposição a estes jogos, através da publicidade ou das notícias. Paralelamente podem ser aplicadas medidas de auto-restrição: “Por exemplo, se existisse um cartão de jogador ou fosse necessário o cartão do cidadão, seria possível a pessoa não comprar raspadinhas”.

O cartão de jogador já existe em Portugal, mas apenas no jogo online. É descrito pela Santa Casa da Misericórdia como “um número de nove dígitos com um código de segurança individual.” “As apostas e os prémios ficam associados ao Cartão de Jogador e este tem de estar associado a uma Conta de Utilizador”, lê-se no site da entidade que gere os jogos de sorte e azar em Portugal. Há vertentes físicas deste cartão noutros países, como na Suécia, com o cartão Svenska Spel.

Esta solução seria aplicada “sempre numa óptica de liberdade e de ser a própria pessoa a decidir não adquirir mais raspadinhas e compreendendo que isso acontece porque tem falta de controlo”, salienta Pedro Morgado.

Uma questão de controlo

Algo que nem sempre é fácil, salientam Pedro Morgado e Zélia Teixeira, psicóloga clínica especializada em comportamentos aditivos. “Normalmente as pessoas não acham que têm um problema porque os gastos são diminutos. A pessoa vai ficando presa a um comportamento que a pode prejudicar e fica presa porque a recompensa é imediata”, explica a psicóloga.

Para além da recompensa imediata, também o investimento de baixa monta e o facto de ser “socialmente aceite e banalizado” contribui para a alta popularidade das raspadinhas.

Na óptica desta psicóloga, o modelo de auto-interdição corre o risco de não funcionar nestes casos. “Até nos casinos temos pessoas que se interditam a si mesmas e tentam contornar essa interdição. Nesses casos o ónus da verificação está no casino, o ónus do controlo está fora do sujeito e isso tem uma certa lógica”, acrescenta. “Pode parecer um paradoxo tentar controlar um comportamento gerado pela falta de controlo.”

Por outro lado, é comum que os próprios doentes não reconheçam que têm um problema e peçam ajuda, revela a psicóloga. Todos estes factores fazem com que o combate a esta forma de jogo patológico seja ainda mais difícil. E Zélia Teixeira não encontra nenhuma medida eficiente para travar o aumento da procura: “A partir do momento em que o jogo é legal, não há como impedir [que as pessoas comprem raspadinhas]. A lei deixa que os maiores escolham o que é melhor para si”.

Dois grupos de risco

No entender de Henrique Lopes, professor na Universidade Católica de Lisboa que se dedicou a vários estudos sobre o jogo na área da saúde pública, a “única forma de limitar a adição deste tipo de jogos é impedir os Estados de promoverem esse tipo de jogo”.

Lembrando que até ao início dos anos 2000, os jogos como as raspadinhas não eram promovidos de forma activa pela Santa Casa da Misericórdia, este investigador nota uma diferença na abordagem daquela instituição, que passou a fomentar a venda maciça de raspadinhas. Se até então não havia viciação, agora há dois grupos de risco: os mais jovens e os mais velhos.

“O perfil epidemiológico do jogador em todo o mundo está a mudar: do perfil clássico do homem de mais de 40 anos e ligado à vida nocturna para um perfil mais ligado ao digital e ao scratching” — ou seja, as velhas raspadinhas.

Henrique Lopes expõe o problema e dá-lhe soluções: “O Canadá melhorou a preparação em Matemática dos mais novos. Os conceitos de probabilidade estão bem explicados e isso basta para os miúdos estarem mais defendidos. No caso das raspadinhas, a única certeza que temos é que se jogarmos indefinidamente vamos ter sempre menos”.

Já no caso dos mais velhos, a solução podia passar pelo fim das série de raspadinhas com temáticas a pensar neles — como o “Pé de Meia”.

É preciso “um diagnostico concreto do problema, que permita saber quem são e onde estão os casos problemáticos” para que o problema possa ser encarado de frente e com medidas políticas que reconheçam um problema real de adição ao jogo, seguindo o exemplo de países como os escandinavos. E, paralelamente, agir no âmbito preventivo, seguindo, por exemplo, o Código de Ética das Lotarias Europeias que estabelece que “os consumidores precisam de ser protegidos das ofertas de jogo”, especialmente os menores, impondo-lhes limites aos valores em jogo, “reality checks” ou encaminhando-os para a ajuda formal, lê-se no documento.

“Portugal foi um dos primeiros a assinar” em 2005, mas que “não colocou em prática”, lamenta Henrique Lopes.

A proibição está, no entanto, fora dos seus planos: “Se se proibisse o que iria acontecer é que iriam aparecer máfias locais a vender raspadinhas”, afirma.

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