Governo de Trípoli suspende negociações de paz depois de porto ser bombardeado
O executivo reconhecido pelas Nações Unidas fê-lo depois de as forças do marechal Khalifa Haftar terem bombardeado o porto de Trípoli, uma das principais vias de entrada de alimentos. Partidários do marechal dizem que bombardearam um navio turco que transportava armas.
Um dia depois de suspender as negociações de paz em Genebra, na Suíça, o primeiro-ministro do Governo de Trípoli, Fayez al-Sarraj, defendeu a posição tomada e recusou os apelos para regressar às conversações. A decisão do executivo reconhecido pelas Nações Unidas acontece pouco depois de a União Europeia ter acordado uma missão militar naval para impor um bloqueio à entrada de armas na Líbia.
Na terça-feira, o Exército Nacional Líbio, liderado pelo marechal Khalifa Haftar, lançou mísseis contra o porto da cidade, danificando-o parcialmente. Fê-lo quando representantes das duas partes no conflito estavam em negociações indirectas para um cessar-fogo que se acreditava que fosse um tímido primeiro passo para se acabar com a guerra. Foi um golpe duro de aceitar e a resposta de Sarraj não se fez esperar: suspensão das negociações, até que haja um sinal de boa-fé, sem dizer qual seria.
“Tem de haver um primeiro sinal forte de todos os actores internacionais que estão a tentar falar connosco”, disse esta quarta-feira o primeiro-ministro, durante a visita à zona do porto bombardeada. O governante deixou ainda no ar a possibilidade de os combates continuarem: “Temos um sinal ainda mais forte que esse, que é defender o nosso povo”.
O ataque veio abalar as frágeis negociações de paz por o porto de Trípoli ser uma das principais vias de entrada de alimentos, combustível, trigo e outras importações na cidade. Os mísseis não atingiram, por poucos metros, um tanque de gás liquefeito. “O ataque de hoje [terça-feira] poderia ter levado a um desastre humanitário e ambiental”, disse o presidente da Empresa Nacional de Petróleo líbia, Mustafa Sanalla, citado pela Al-Jazeera.
As forças de Haftar, que em Abril lançaram uma ofensiva que redundou num impasse às portas da capital, contestam esta narrativa e argumentam que os seus mísseis tiveram como alvo um navio turco que transportava armas e “combatentes vindos da Síria” para apoiar o executivo de Trípoli, versão por este negada.
A Turquia é um dos grandes aliados de Trípoli e não tem poupado recursos para evitar uma vitória de Haftar, que já controla a grande maioria do território líbio. Já enviou material de guerra, dois mil milicianos que combateram nas linhas do Exército Livre da Síria e até uma missão militar oficial para dar treino e aconselhamento aos soldados do Governo de Acordo Nacional, evitando assim o choque com os cerca de 800 mercenários russos, que lutam do lado de Haftar. A Rússia tem insistido não ter tropas no terreno.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas impôs o embargo de armas à Líbia e na conferência de paz em Berlim, no final de Janeiro, várias das potências que apoiam uma ou outra das partes do conflito comprometeram-se a respeitar o embargo e acordaram uma lista de 55 pontos para o fim da guerra. Acordou-se até a acordar um cessar-fogo, entretanto violado.
A situação no terreno pouco mudou e a promessa de se respeitar o embargo não foi cumprida e, dez dias depois, a missão das Nações Unidas na Líbia, que há muito se queixa de violações do embargo, disse que “numerosos aviões de carga” têm sido vistos a chegar ao país para fornecer “armas avançadas, veículos armados, conselheiros e combatentes às partes envolvidas”.
“O embargo de armas tornou-se uma piada. Precisamos todos de assumir posições. É complicado por haver violações por terra, mar e ar, mas é preciso que sejam monitorizadas e que haja responsabilização”, disse Stephanie Williams, vice-enviada especial das Nações Unidas para a Líbia. As armas em solo líbio são hoje tão sofisticadas, como é o caso dos drones, que o conflito se tornou num laboratório de armamento.
Haftar conta com o apoio da Rússia, do Egipto, da França e dos Emirados Árabes Unidos e o executivo de Trípoli com o da Turquia, Qatar e Itália. Apoios que têm inundado o país com material de guerra e alimentado um conflito que já causou pelo menos de 150 mil deslocados e a morte a mais de 280 civis, a que se juntam dois mil combatentes de ambos os lados.
UE avança com missão marítima
Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 Estados-Membros da União Europeia concordaram, no início desta semana, destacar navios, aviões e satélites militares para patrulharem a costa líbia a 100 quilómetros de distância, para impedirem a entrada de navios que transportem equipamento militar. Foi o ultrapassar de um bloqueio que se prolongou por meses e que retirou à União Europeia proeminência na resolução da guerra (Turquia e Rússia têm tomado a dianteira) por ter de gerir alianças antagónicas no seu seio: a Itália apoia Trípoli, enquanto a França é aliada de Haftar.
Além disso, as posições anti-imigração dos governos italiano e austríaco foi outro dos entraves com que a UE se confrontou. Roma e Viena opunham-se a qualquer missão militar que patrulhasse a costa líbia, por temerem que se transformasse numa de resgate marítimo, e, para ultrapassar as resistências, ficou acordado que caso a missão inspire refugiados líbios a atravessar o Mediterrâneo, os navios serão retirados.
“Há um consenso básico de que agora queremos uma operação militar e não uma missão humanitária”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros austríaco, Alexander Schallenberg, citado pelo diário britâncio Guardian. Na mesma reunião em que foi decidida a nova missão militar, os ministros decidiram pôr termo à Operação Sophia, criada em 2015 para combater o tráfico de pessoas e evitar a perda de vidas humanas no Mediterrâneo.
“Os activos navais podem ser destacados nas áreas mais relevantes para a implementação do embargo de armas, na parte oriental da área de operações ou a pelo menos 100 quilómetros da costa líbia, onde as hipóteses de se conduzir operações de resgate são baixas”, afirma um memorando europeu interno, divulgado pelo grupo de liberdades civis Statewatch, sediado em Londres.
A operação poderá limitar a entrada de armas na Líbia por via marítima, mas não a travará por completo. Muito do armamento, principalmente aquele que acaba nas mãos das fileiras de Haftar, chega por via terrestre, desde o Egipto até à Líbia, e por via área. “A decisão parece atingir principalmente o Governo de Acordo Nacional, que até ao momento tem recebido apoio militar da Turquia por via marítima”, disse Umberto Profazio, analista italiano do Médio Oriente, ao turco TRT World.
Os críticos da decisão europeia dizem que é insuficiente por não enviar uma mensagem suficientemente forte a quem apoia as partes beligerantes. “Concordar em sanções seria enviar uma mensagem clara à Turquia, Rússia e Emirados Árabes Unidos”, criticou a eurodeputada alemã Nicola Beer, do Partido Democrata Livre, citada pela Deutsche Welle.