A radicalidade do humano na eutanásia
Um voto no sim não impõe que ninguém recorra à eutanásia, mas reforça um direito. Sim, um direito triste, pois nenhum de nós ficará feliz com a notícia de que outrem sentiu que a única saída para a sua doença incurável e fatal era a antecipação da morte.
Fico perplexo com a facilidade com que, em tema tão complexo, existe tanta certeza e superioridade moral. O facto de alguém apoiar ou rejeitar os projectos de lei sobre a ajuda directa à morte não faz dele ou dela um ser melhor ou pior. Os extremismos em matérias de tamanha sensibilidade apenas demonstram a rapidez com que lançamos anátemas sobre quem pensa diferente de nós. Ainda há um longuíssimo caminho a percorrer neste Portugal em que tantos vislumbram o mundo a preto e branco. Se se tem uma visão religiosa da vida, se se acredita em algo, então tem necessariamente de se ser contra a eutanásia. Se se é de esquerda, o voto só pode ser sim. Nada mais simplista e, como quase sempre, os simplismos não cobrem a realidade.
Tamanho desrespeito pelos tons de cinza que em quase tudo comandam a vida apenas demonstra que, como civilização, ainda estamos na infância do desenvolvimento. É natural que as religiões patrocinem a concepção que defendem e estranho seria que fizessem o contrário. O que já é de lamentar é um discurso sub-reptício de que se não é “boa pessoa” se se defender o sim ou que, de algum modo, quem mantém uma relação com o divino será afastado dela por pensar de forma diversa. Não é esse o Deus de bondade, de compreensão ao outro e de abertura às opiniões diversas que caracteriza qualquer divindade que uma religião serve. O problema é que – o dado é histórico – as religiões vêm servindo cada vez mais como instrumentos de poder e da sua conservação que como serviço aos outros. Veja-se a incapacidade de Francisco na recente possível abertura à ordenação de padres casados. A estrutura que se serve de algo é muito mais pesada que aquela que veio para servir.
Confesso que já tive mais certezas sobre o tema que convoca o país. Mesmo assim, se fosse deputado, votaria a favor da autonomia da vontade, tendo experimentado, como tantos dos que me lêem, a dor lancinante de familiares próximos em situações idênticas às que ora se visam legislar. Esforcei-me por explicar aqui em que consiste a eutanásia e por demonstrar que os projectos são, em geral, equilibrados, bem articulados, embora passíveis de melhoria na especialidade, como é natural. Em todos eles a manifestação livre, séria e esclarecida é tão instante, tem de ser declarada tantas vezes, que o processo pode bem traduzir-se, na prática, numa desmotivação a cujo fim só chegue quem está realmente decidido que não quer mais “viver” assim. Quem sou eu para impor a minha mundividência? Quem é o Direito para se impor a decisões tão íntimas onde só lhe cabe regular? Que concepção de solidariedade humana é esta que, sob a desculpa da discussão dos cuidados paliativos, quer lançar areia para os olhos dos cidadãos? Claro que todos somos favoráveis a eles e sabemos que não têm a qualidade devida. Mas não é disto que ora se trata: mesmo podendo dar-se dignidade na morte, retirando ou minorando o sofrimento, há desde logo casos em que a ciência médica o não consegue e deve respeitar-se que um nosso concidadão não deseje “viver” assim.
Na verdade, tudo parte da concepção de “vida” de cada um. Se uns aceitam o sofrimento e dele fazem serviço a uma divindade, mostrando-se exemplos que enobrecem a sociedade, como aconteceu com João Paulo II, posso eu, simples mortal, exigir de outra pessoa que seja um herói ou santo dos tempos modernos? Nunca me sentirei com tal poder e tenho muito medo dos que dizem tê-lo, pois aproximam-se da tirania dos costumes.
Um voto no sim não impõe que ninguém recorra à eutanásia, mas reforça um direito. Sim, um direito triste, é certo, pois nenhum de nós ficará feliz com a notícia de que outrem sentiu que a única saída para a sua doença incurável e fatal era a antecipação da morte. Tantos defensores do não, do alto da sua moralidade, a acusarem, nas entrelinhas, os defensores do sim de serem uma espécie de câmaras de gás ambulantes. A desinformação, o castigo divino, as más práticas estrangeiras, com as quais ninguém pode concordar, são bandeiras usadas por quem entende ter um direito sobre a vida dos outros. O direito a impor a alguém que sofra atrozmente porque só assim a “ordem social” se manterá a mesma.
Quando se acordar da votação do dia 20, no caso de o sim reunir mais votos, ninguém poderá comemorar. Apenas teremos demonstrado um maior respeito pelo direito que nós mesmos ou outras pessoas poderão querer vir a lançar mão na decisão mais dura da vida de um ser humano. Vida e morte são faces de uma mesma moeda. E, aqui, cada moeda vale o mesmo. O que não posso fazer é impedir que um meu concidadão, legalmente enquadrado, não tenha acesso a essa outra face da moeda. Não posso, pelo facto escorreito de não ser dono da vida de ninguém e de me parecer um acto de solidariedade ajudar alguém a fazer a última viagem da forma que para ele ou ela seja menos dolorosa. Certamente que garantindo o direito de objecção e, por certo, não impondo uma mundivisão como melhor que aquela que nos é contrária. Isto também é democracia. Eu diria, isto é a essência do ser-se humano.