Caso Neto de Moura – Juízo Final
Agora que passou um ano desde o dia em que o Conselho Superior da Magistratura decidiu sancionar disciplinarmente o juiz, sou instado a fazer um desvio à regra que sempre segui durante o meu mandato. O convite do PÚBLICO é o pretexto.
Muito se escreveu em Portugal sobre Joaquim Neto de Moura, desembargador do Tribunal da Relação do Porto. O caso do “juiz das mulheres adúlteras” gerou uma onda de indignação nacional, desencadeou manifestações em várias cidades e produziu um turbilhão de caricaturas na voz de comentadores, humoristas e fazedores de opinião. Dificilmente se conseguirá descortinar um semelhante caso de intenso e ruidoso debate nacional sobre a atuação de um juiz. Mas, agora que passou um ano desde o dia em que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) decidiu sancionar disciplinarmente o juiz, um súbito silêncio se instalou na montanha e o crepúsculo da tarde invade a minha varanda. Sou instado a fazer um desvio à regra que sempre segui durante o meu mandato, a da comunicação colegial. O convite do PÚBLICO é o pretexto.
Como é já de conhecimento público, fui o relator do Processo Neto de Moura no CSM. Num dos mais longos e inesquecíveis plenários do CSM, fui nomeado relator, após a rejeição da proposta de arquivamento que um vogal becado tinha levado à votação no Conselho. O arquivamento foi recusado por apenas um voto (7-8). Os srs. presidente e vice-presidente, conselheiros do STJ, seriam os únicos juízes a votar com a maioria dos vogais não becados. Foi necessário um 2.º plenário e um novo relator. A escolha recaiu sobre a minha pessoa, o mais jovem vogal do Conselho. Aceitei a incumbência, consciente do grau de relevância que o processo assumia, bem como da necessidade de acolher argumentos dos membros que votaram a sanção disciplinar. Esta cultura de compromisso é indispensável num órgão colegial (recordo que são 17 membros). Assim, o projeto de deliberação que preparei e apresentei ao plenário, com uma proposta de sanção e a sua medida, obteve a aprovação dos membros que votaram a pena disciplinar.
Num caso inédito, em 5/02/2019, o juiz Neto de Moura foi sancionado com uma pena disciplinar por violação do dever funcional de correção. Mas depois de declarado inimigo público número um, tudo o que não fosse “expulsão” saberia a pouco. Os setores mais radicais atacaram a pena de advertência registada, sem contudo perceber a inversão de curso que tal condenação criara. A decisão do CSM constituiu um verdadeiro leading case, afastando a linha de pensamento tradicional que vedava ao controlo administrativo a relevância disciplinar da fundamentação da decisão judicial por violação flagrante do princípio da independência. Sem razão. Situa-se fora da esfera de proteção do princípio da independência a utilização de expressões grave e desnecessariamente ofensivas dos intervenientes processuais, lesivas da dignidade pessoal e da consideração social das pessoas afetadas pela decisão judicial.
Em boa verdade, não foi transmitida fielmente à opinião pública essa mutação jurisprudencial do Conselho, que vai muito além da condenação do estilo misógino dos textos judiciais. O CSM aplicou uma sanção disciplinar por palavras inscritas no texto de uma decisão judicial. Essa deliberação punitiva criou ondas de choque no corpo da magistratura, que vivia um período eleitoral para o CSM. Neto de Moura recorreu para o STJ. Desde então aguardava-se, com expetativa, a decisão do Supremo sobre o recurso interposto. Ao STJ coube o juízo final. Na quarta-feira, dia 5/2/2020, o STJ negou provimento ao recurso e confirmou inteiramente a decisão disciplinar do CSM. A partir daqui consolidou-se na ordem jurídica portuguesa um juízo definitivo quanto ao mérito da questão principal objeto do processo.
(1) Primeiro, é lícito que um juiz expresse na decisão judicial convicções pessoais (de natureza política, ideológica ou religiosa) sobre matérias alheias ao processo? A resposta é negativa. No plano da autorregulação ética (ver Compromisso Ético dos Juízes Portugueses, p. 22, sobre o princípio da reserva) já se sustenta que o juiz não deve utilizar a decisão judicial ou a audiência pública para exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa, que não sejam estritamente necessárias para a fundamentação e se afastem manifestamente do objeto do caso. Agora, fica claro que essa falha também pode ter relevância disciplinar, consoante as variáveis do caso concreto, designadamente quando for evidente que dessa conduta resulta a infração de deveres funcionais dos magistrados judiciais.
(2) Segundo, o princípio da independência não é compatível com a utilização de expressões que ultrapassam o limite do respeito devido a qualquer interveniente processual, seja na fundamentação escrita de qualquer decisão, seja na condução oral de qualquer diligência processual. Logo, a independência não pode servir de guarda-chuva para cobrir atuações incorretas ou antijurídicas, sobretudo quando estão em causa direitos fundamentais dos intervenientes.
(3) Terceiro, anda para aí muita confusão sobre a citação de textos sagrados, como a Bíblia. Um juiz pode citar ou referir-se a trechos da Bíblia em sede de fundamentação da decisão judicial. Não há nenhum princípio de proibição, como é evidente. Sem embargo, trata-se de uma citação mais exigente, que precisa de contextualização, para ser feita de modo adequado (o que não sucedeu, segundo a Conferência Episcopal Portuguesa).
(4) Quarto, é notória a comunhão de pontos de vista dos fundamentos da decisão do CSM e do Acórdão do STJ de 5/02/2020. Os conselheiros do STJ sustentaram que “nos acórdãos relatados pelo impugnante e considerados no âmbito do processo disciplinar, foram utilizadas expressões impróprias (...) desnecessárias e lesivas da dignidade pessoal e da consideração social das pessoas que se encontrem nas situações consideradas no acórdão, cuja utilização lesa a imagem de ponderação, de moderação e de imparcialidade que o sistema de justiça deve transmitir à sociedade”.
(5) Quinto, a sanção aplicada pelo CSM foi a mais equilibrada. Quando se verifica uma mutação jurisprudencial, é de elementar bom senso que não se transite da impunibilidade para a punição com a aplicação de uma sanção exemplar. Também por aqui o CSM se afirmou como elemento pacificador e conciliador do sistema. O juiz acabaria, com a sua anuência, por ser transferido da 1.ª secção criminal para a 3.ª secção cível da Relação do Porto em 6/3/2019.
(6) Por último, o CSM exerceu escrupulosamente as suas competências, reforçando no exterior a imagem de que o órgão existe para atuar, e fortalecendo o prestígio das instituições judiciárias. Analisando as últimas decisões do CSM, é inquestionável que os juízes portugueses são escrutinados pelo órgão com rigor, segundo um modelo de governação partilhada bem mais exigente e eficaz do que sucede na generalidade das ordens profissionais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico