Batida ou como criar no centro de Lisboa sem pagar renda
Até ao fim do mês, Pedro Coquenão (Batida) e Luaty Beirão (Ikonoklasta) habitam na Casa Independente, em Lisboa, para uma acção artística, desencadeada pelo primeiro, onde música, artes visuais e rádio se tacteiam.
Em palco, dois seres que parecem ter vindo de outra dimensão, de cara tapada, com um deles ocupando-se da bateria, programações e, às vezes, da voz, enquanto o outro vai discorrendo sobre igualdade, democracia, mobilidade ou neocolonialismo, num registo que por vezes é informativo, noutras acusador ou irónico. Por vezes entra em acção a bailarina Sani, instituindo um ambiente de estranheza, mas também de proximidade.
O som é luxuriante, percussivo e físico, contendo elementos de recolhas sonoras feitas em África entre as décadas de 1920 a 1970 pelo etnomusicólogo inglês Hugh Tracey. Existe espaço para o sentido lúdico e a reinação, mas com substância. O público, esse, abandona-se ao ritual, inicialmente de forma tímida, como se não soubesse bem o que estava a presenciar, e depois de maneira mais participativa, deixando-se conquistar. Foi na última sexta-feira, na Casa Independente, no largo com o mesmo nome, no coração de Lisboa. Para a apresentação de Ikoqwe, um trabalho performativo e musical em construção, estiveram em palco, de cara oculta, o luso-angolano Pedro Coquenão, conhecido por Batida, e Ikonoklasta, ou seja Luaty Beirão, conhecido rapper e activista angolano.
Os dois estarão, até ao final do mês, a viver no andar de cima do espaço da Casa Independente, desencadeando várias acções artísticas. A ideia pertence a Pedro Coquenão, com trabalho na área da música, rádio e artes visuais, que deu à iniciativa o nome irónico de Alojamento Artístico Local. Para já existe a exposição Neon Colonialismo, com peças da sua autoria e de outros artistas escolhidos por si (dispostas na Casa e, ao lado, na sala-galeria da Junta de Freguesia de Arroios), uma emissão de rádio (sintoniza-se a rádio Normal, na zona, em 88.4FM) e o musical Ikoqwe, resultante do projecto que os dois assumem, que será apresentado sextas e sábados de Fevereiro, sempre com novidades, seguido de sessões dançantes, como ocorreu no último fim-de-semana.
A ideia é esbater fronteiras artísticas, espaciais (entre o lugar informal e o expositivo) e até de residência. No contexto dos excessos do alojamento local e da especulação imobiliária, afirma Pedro Coquenão que aquela foi a forma que encontrou de viver um mês no centro da cidade sem pagar renda. Di-lo com o habitual sentido de humor, que utiliza de forma desafiante e com pertinência, questionando certezas adquiridas.
A sua presença sente-se logo no exterior, à entrada, com uma carrinha azul estacionada (em Angola são conhecidos como candongueiro, veículos de transporte de pessoas e de divulgação musical), de onde sai música. No hall, nas escadas ou até na casa-de-banho a sua presença está em todo o lado. Há mapas do tráfico transatlântico de escravos, existe uma peça estilizada (Neon Colonialismo) que encadeia, para logo ao lado sermos confrontados com uma frase artesanal inscrita na parede ("O colonialismo foi/é mau"), como se quisesse interrogar se, sobre a Lisboa crioula, tão celebrada hoje, ainda existe uma revisão histórica a efectuar.
Lá dentro vislumbra-se uma pintura a óleo encomendada a Lorenzo Degl’Innocenti, enquanto um estendal nos degraus de transição para o andar de cima nos deixa ver camisas, calças ou peúgas, sinal de que na casa está mesmo a viver gente. Mais surpreendente é a exposição patente na junta de freguesia, com a vitrina adornada por rádios, com uma selecção de peças escolhidas por Pedro Coquenão do acervo do Museu de Lisboa. Entre elas a maqueta original do Padrão dos Descobrimentos (escultura do mestre Leopoldo de Almeida), de 1940, não porque se reveja na simbologia, mas porque acha necessário falar dele, e uma série de aguarelas de António Costa Pinheiro, o artista plástico falecido em 2015 de que nunca ouvira falar e por cujo trabalho se entusiasmou.
Numa delas está inscrita a frase “o mar é meu o mar é teu o mar é nosso o mar é de todos o mar não é de ninguém.” É isso. É esse o desafio de Pedro Coquenão, habitarmos a Casa Independente, como se fosse a sua casa, como se fosse a nossa casa, um espaço plural, de todos.