Eutanásia: a aridez da realidade portuguesa
Toda esta pressa em votar a despenalização da eutanásia faz ressaltar não só um oportunismo político, mas também um desconhecimento dos partidos em relação à realidade concreta de Portugal.
Vão reunir-se em plenário, no dia 20 de fevereiro, os deputados para discutir a despenalização da eutanásia. PS, BE, PAN e PEV surgem assim à desfilada e arfantes com a marcação de um debate sobre a eutanásia na Assembleia da República, porque parece existir brecha que permita a aprovação de um projeto de lei. Vem a lume a tempestividade política para legislar uma matéria da maior seriedade e gravidade. Avultam-se esquadrões amantes da novidade, da ilusão de um progressismo civilizacional, repudiadores do pensamento e da ciência. “Progresso” contra “conservadorismo”, dirão alguns. Em matéria de eutanásia não existem progressos ou conservadorismos, existe debate público e pensamento. Ou seja, é necessário tempo para a ponderação.
Esta ânsia de debater a eutanásia no parlamento, a montante de uma discussão profunda, aberta à sociedade civil, e dos pareceres de entidades fulcrais como a Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), esburga estas propostas de lei de fundamento esclarecido e de qualquer epistemologia. Aliás, conveniente será para os partidos proponentes a realização da discussão parlamentar poucos dias depois de reunião aprazada do CNECV, tendo em conta que os projetos de lei, muito semelhantes entre si, em quase nada mudaram relativamente aos apresentados em 2018 e que um parecer emitido em março desse ano pelo CNEVC não foi favorável ao Projeto de Lei n.º 418/XIII/2.ª do PAN. Consequentemente, toda esta pressa faz ressaltar não só um oportunismo político, mas também um desconhecimento dos partidos em relação à realidade concreta de Portugal.
Para começar, os arguentes em plenário desobrigam-se de perceber as assimetrias no acesso aos cuidados em saúde em Portugal. Verdadeiras desigualdades de cariz territorial, social, económico e educacional, que suscitam diferenças eticamente condenáveis entre pessoas que pedem a antecipação da morte. Aqui não abarco as insuficiências dos cuidados paliativos e a ignorância de uma franja importante da população relativamente àquilo que estes cuidados representam.
Ademais, a proteção que se pretende conferir a estes doentes restringindo a prática da eutanásia às instituições públicas munidas de condições previstas, afastando esta prática das instituições privadas (e bem!), descura a cultura empresarial das instituições de saúde públicas com potencial influência deturpadora da autonomia dos doentes e da bonomia de qualquer ato solidário para com o sofredor.
Os partidos políticos proponentes de tais projetos de lei apoiam-se eminentemente no princípio da autonomia e da autodeterminação individual na fundamentação das suas propostas. Contudo, defender o princípio ético da autonomia não é suficiente para sustentar a despenalização da morte antecipada a pedido. Por exemplo, em Portugal uma das formas mais rutilantes do exercício da autonomia em saúde manifesta-se no momento do consentimento informado. A valorização da autonomia neste processo é extraordinariamente difícil, podendo a autonomia, em alguns casos, não se atualizar. Isto ocorre pela existência de uma cultura paternalista da medicina portuguesa. Um “paternalismo mitigado”, nas palavras de João Lobo Antunes. Em que medida poderá esse paternalismo desvirtuar as decisões verdadeiramente autónomas em situações de vulnerabilidade e de sofrimento intolerável?
A este propósito, e verificando que a opinião de médicos é copiosamente invocada pelas mais diversas vozes nos diferentes jornais deste país, quero sublinhar que a ética médica não é a única ética, nem essa ética trespassa dogmaticamente todos os médicos. A deontologia médica, como conjunto normativo por que se regem as boas práticas clínicas, não constitui uma ética, não é uma teoria moral. Por isso mesmo, os médicos distribuem-se numa ampla gama entre o “favor absoluto” e o “contra absoluto” da eutanásia, existindo uma grande variabilidade inter e intra-médico, com combinações infinitas perante as mais diversas situações, mutáveis no tempo e sob a influência de uma intersubjetividade assombrosa. O mesmo médico, perante dois doentes diferentes, pode ser a favor ou contra a eutanásia, e estas posições podem não perseverar no tempo. Não existe, portanto, uma ética médica monolítica, graniticamente gravada num qualquer tratado de medicina ética. Do ponto de vista normativo, é sabido que a deontologia médica proíbe os médicos deste tipo de práticas. Aqui, o campo é absolutamente infértil para a legalização da eutanásia nos moldes dos projetos de lei em causa, que mencionam um médico assistente/orientador/responsável, conforme as designações nas diferentes propostas de lei, como agente de materialização ativa do ato.
Para além disso, o efeito de rampa deslizante é amplamente desvalorizado. É para mim irrefutável que a legalização da eutanásia promove uma irremediável adaptação cultural e social, uma espécie de insensibilidade que não só torna difícil a sua revogação por arrependimento, como conduz a uma tendência para a sua aplicação discricionária e licenciosa. Basta olhar além-fronteiras, em direção à Holanda e Bélgica, onde já foram relatados casos de eutanásia em doentes sem consentimentos expressamente assinados, sem doenças terminais e em casos de “cansaço vital”.
Portugal é árido para as sementes da eutanásia. Tem de ser arroteado com a discussão pública e a intervenção da sociedade civil.
Posto isto, neste contexto de reunião pressurosa e oportunista, vejo no dia 20 de fevereiro uma Assembleia da República onde, mais do que discutir a coisa pública, se esbracejam interesses desossados, ressuscitando a “intriga constitucional” queirosiana que perdura no tempo.
Conquanto valorize o ato legislativo, deixo uma pergunta para reflexão: quem somos nós, e os deputados em particular, reunidos em assembleia, verdadeiros arautos de ideologias sem base de raciocínio, para legislar a morte a pedido de alguém cujo sofrimento é totalmente intransmissível ao outro?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico