Referendo sobre a eutanásia ganha velocidade com o apoio da Igreja
“Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?”. Eis a pergunta proposta para um referendo que ontem já somava quase três mil das 60 mil assinaturas necessárias e que, uma vez aceite, poderá suspender o processo legislativo em curso para a despenalização da eutanásia.
A recolha das 60 mil assinaturas necessárias para forçar o Parlamento a lançar um referendo de iniciativa popular sobre a eutanásia vai passar “pelos estádios de futebol, pelos estabelecimentos prisionais, hospitais, escolas e igrejas”, segundo a presidente da direcção da Federação Portuguesa pela Vida (FPV), Isilda Pegado. É o tudo por tudo para travar a despenalização da morte assistida proposta pelo PS, BE, PAN e PEV, cujos quatro diferentes projectos têm discussão agendada para o próximo dia 20, no Parlamento.
Numa altura em que se dá como certa a aprovação pelos deputados de pelo menos um dos quatro projectos em cima da mesa (em Maio de 2018, a eutanásia foi chumbada em votação nominal por uns escassos quatro votos de diferença), a Igreja Católica em Portugal poderá juntar-se a esta campanha pelo referendo, que, a ser aprovado, poderá suspender o processo legislativo em curso.
“Creio que a intenção é sobretudo a de consciencializar a sociedade e os legisladores da gravidade da decisão e sublinhar a inviolabilidade da vida, especialmente quando mais fragilizada”, declarou ao PÚBLICO o cardeal-patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) D. Manuel Clemente, remetendo um pronunciamento oficial dos bispos portugueses para a próxima terça-feira, dia em que haverá reunião do conselho permanente da CEP.
Nos últimos dias, além do bispo do Porto, D. Manuel Linda, que, em Dezembro, numa entrevista ao PÚBLICO, pusera em causa a legitimidade “moral” dos deputados para legislarem sobre esta matéria, D. João Lavrador, o bispo de Angra, nos Açores, qualificou a eutanásia como “sintoma de uma sociedade doente” e sustentou que a vida humana “não pode estar ao arbítrio de um grupo, ser manipulada ou destruída”. Do mesmo modo, o bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida, escreveu uma carta aberta aos deputados para lhes pedir que, no momento da votação, pensem “conscientemente, livremente e responsavelmente nas pessoas, especialmente nas mais frágeis”, mais do que em “dar prioridade a estratégias políticas, ideológicas ou a orientações partidárias”.
"Sem medo” do desfecho
O posicionamento da Igreja não difere em nada do assumido pela FPV que vai promover no dia 20 de Fevereiro, pelas 12h30, uma concentração no Largo de São Bento, em frente ao Parlamento. Até lá, prosseguirá a recolha das assinaturas para esta proposta de referendo de iniciativa popular que, uma vez admitida no Parlamento, é obrigatoriamente apreciada e votada em plenário, podendo daí resultar a sua aprovação ou rejeição. “A lei prevê a possibilidade de o Parlamento chumbar a pretensão – e prevê bem porque poderia existir uma iniciativa popular que ofendesse os valores da Constituição”, explica Isilda Pegado, para concluir, porém, que, “e porque as 60 mil assinaturas necessárias representam efectivamente mais de metade dos portugueses, neste caso, a entrada da proposta suspenderá o processo legislativo em curso e o Parlamento cumprirá o seu dever democrático de dar tempo ao povo português para que se pronuncie sobre uma iniciativa que viola valores da Constituição”.
Considerando que “o debate sobre a eutanásia que se tem feito nos corredores de São Bento não é suficiente para demonstrar aos portugueses o que está em causa”, a presidente da FPV sustenta que estamos perante “uma matéria que ultrapassa os programas eleitorais”. “Os dois maiores partidos com assento na Assembleia não tomaram posição sobre a eutanásia no último acto eleitoral e, por isso, os deputados não têm legitimidade moral para decidir”, frisou.
Isilda Pegado diz-se “sem medo do desfecho” de um eventual referendo, apesar do que aconteceu com o aborto que foi o primeiro tema a ser submetido a referendo e que viria mesmo a ser despenalizado dez anos depois. Na altura, e depois de, em Fevereiro de 1998, o Parlamento ter aprovado a despenalização do aborto, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, à data primeiro-ministro e líder do PSD, respectivamente, aliaram-se na sujeição da proposta a um referendo popular que, em Junho do mesmo ano, ditaria a vitória do “não”, apesar de o seu resultado, e porque nele participaram apenas 32% dos eleitores”, não ter sido vinculativo. Quando o aborto foi de novo a referendo, em Fevereiro de 2007, venceu o “sim” e o Parlamento despenalizou mesmo a IVG.
Do mesmo modo, a eventual realização de um referendo sobre a eutanásia permitirá a Marcelo Rebelo de Sousa, agora na qualidade de Presidente da República adiar, pelo menos durante algum tempo, a sua despenalização, sem precisar de recorrer ao veto presidencial. E ao que tudo fazia parecer ontem, no congresso do PSD, a consulta popular poderá ter o apoio do principal partido da oposição.