Os “ténis milagrosos” são o novo debate do atletismo
A Nike desenvolveu umas sapatilhas de competição com características especiais, que melhoram o desempenho dos atletas. Influência excessiva na competição desportiva ou apenas o uso legítimo da evolução tecnológica ao serviço do desporto? Confira as perguntas e respostas sobre a nova polémica do atletismo mundial.
O atletismo, sobretudo nas disciplinas de corrida, ainda é um grupo de atletas a correrem, tentando mexer as pernas mais rapidamente do que os adversários. Não obstante, como em qualquer outra área da sociedade, a evolução tecnológica pode desempenhar um papel importante na eficácia com que os atletas desempenham a aparentemente simples mecânica de mexer as pernas. E permitir, a quem usa essa tecnologia, superar os adversários que não a usam.
Em traços gerais, é isto que actualmente se passa no atletismo. A marca Nike desenvolveu os Vaporfly, uns ténis de competição com características especiais, que melhoram o desempenho dos atletas. Terão uma influência excessiva na competição desportiva – “doping tecnológico”, por outras palavras – ou serão, apenas, o uso legítimo da evolução tecnológica ao serviço do desporto?
A pergunta não tem resposta clara, até porque, ao fim e ao cabo, continuam a ser as pernas dos atletas a fazerem o trabalho. Ainda assim, a solução passa, para já, por uma regra intermédia: a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) decidiu permitir os “ténis milagrosos”, mas com algumas restrições. Já lá vamos.
Tempos melhoram 4%
A eficácia destes ténis é, logo à partida, veiculada pela própria Nike. Estratégia de marketing, dirão uns, mas o certo é que há indicadores claros da influência destas sapatilhas. Entre Setembro de 2018 e Setembro de 2019, foram estabelecidas as cinco marcas mais rápidas de sempre em maratonas. O que calçavam os atletas que obtiveram essas marcas? Nike Vaporfly, claro está.
Diogo Antunes, um dos principais velocistas portugueses da actualidade e ex-recordista nacional dos 4x100 metros, dá ao PÚBLICO uma visão intermédia. O velocista – que nem é quem mais beneficia com este tipo de calçado, mas sim os fundistas e maratonistas – considera que estes materiais devem ser proibidos se ficar provado que adulteram a competição. “Se for cientificamente provado que aumentam significativamente a performance de um atleta, então não deveriam ser legais numa competição, pois já existem, e bem, muitas restrições a nível de equipamento”, diz, apesar de acrescentar: “Por outro lado, aprovo o seu uso em treino. Todos os dias surgem novas oportunidades de aumento de rendimento com material desportivo e os atletas estão sempre à procura de mais e melhores condições para aumentar a sua performance”.
Também no estrangeiro esta influência é veiculada. O New York Times analisou vários maratonistas amadores, cujos tempos provaram que a promessa da Nike em melhorar os tempos em pelo menos 4% é real – isto significa algo entre dois a quatro minutos ganhos por maratona. Jake Riley, atleta norte-americano que terminou em nono lugar na última maratona de Chicago, disse, depois de usar as sapatilhas, que “é como correr em trampolins”.
O próprio Eliud Kipchoge, o primeiro a correr uma maratona abaixo das duas horas, fê-lo com ajuda de umas AlphaFly (sapatilhas Vaporfly ainda mais optimizadas) – um “empurrão” que se juntou às condições favoráveis dessa prova, na qual o corredor teve “lebres” para o ajudarem, um percurso amigável e todo um evento montado para que fosse batido o recorde. E, por isso, a marca não foi homologada.
Também a maratonista Mara Yamauchi, que usa ténis de outra marca, garantiu a eficácia do calçado das adversárias. “É difícil imaginar alguém sem Vaporfly a vencer medalhas em Tóquio. Estamos a entrar numa competição para encontrar não o melhor atleta, mas sim quem tem os melhores sapatos. Cabe à Federação Internacional de Atletismo (IAAF) criar uma plataforma de competição equilibrada para todos”, apontou, à BBC, sobre um caso que faz relembrar os anos em que foram batidos múltiplos recordes de natação, fruto da utilização de fatos de corpo inteiro com materiais que reduziam a resistência e multiplicavam a eficiência das braçadas.
Perguntas e respostas
Como funciona este calçado “mágico”?
As sapatilhas Vaporfly têm uma sola com 40 milímetros de grossura e uma placa de carbono no interior, bem como uma espuma que devolve 87% do impacto – ou seja, reduz a energia gasta pelo atleta, funcionando como uma “mola” propulsora na passada seguinte.
O que decidiu a IAAF?
As sapatilhas AlphaFly foram proibidas. Com muito atraso, depois de meses de protestos, a IAAF estabeleceu que, no máximo, a sola do calçado de competição pode ter 40 milímetros de espessura e uma só placa de carbono no interior. Estas especificações encaixam, na perfeição, nas Nike Vaporfly, a primeira geração dos ténis milagrosos.
Não poderia haver uma proibição total?
Sim, mas a IAAF teria, nesse cenário, dois problemas entre mãos: as marcas já homologadas e os treinos já avançados para Tóquio 2020. “Como estamos em ano olímpico, e muitos atletas já se prepararam com as sapatilhas de 40 milímetros de sola, não podemos proibi-las”, justificou o organismo.
Por que motivo os atletas não optam todos por este calçado?
Nem todos os atletas têm acesso às Nike Vaporfly: uns pelo preço avultado das sapatilhas (cerca de 270 euros), outros porque já têm contratos de patrocínio assinados com outras marcas. Há mesmo registos de um atleta que usou as “sapatilhas mágicas” com um logótipo de outra marca a cobrir o da Nike.
Por isso, a IAAF foi mais longe. A partir de 30 de Abril, precisamente três meses antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio, todas as sapatilhas admitidas em competição devem estar acessíveis a todos os atletas e em todos os tipos de comércio.
Como é que a Nike se defende?
A Nike não tem muitos motivos para entrar no “barulho” em torno destas sapatilhas, mas sim deixar a sua criação viver o sucesso que tem tido. Ainda assim, a marca já reagiu a tudo isto. Sem muitas palavras, mas com uma justificação técnica e ética.
“Respeitamos o espírito das regras e não criamos quaisquer sapatos de corrida que devolvam mais energia do que aquela que o atleta despende”, apontaram.
As outras marcas não podem produzir o mesmo?
Não sendo clara a extensão da protecção da Nike a esta invenção, algumas notícias têm garantido que a marca já registou várias patentes – sobretudo no ângulo das placas de carbono –, para impedir os concorrentes de produzirem sapatos com um mecanismo semelhante a este.
Outras notícias veiculam, porém, que as outras marcas têm algum espaço de manobra e que podem produzir protótipos semelhantes às Vaporfly. Não têm é muito tempo para o fazer antes dos Jogos Olímpicos.