Brio na velhice

Nunca perdeu o brio. Arrastava-se com dificuldade para a fisioterapia, depois para o cabeleireiro e agora, já com autonomia, retomara as rotinas de bairro. Cabeleireiro às quintas — mãos e brushing. Sempre impecável.

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Mag Rodrigues

Há mais de 40 anos que não saía de casa sem batom. O batom rosa-escuro tornara-se parte do seu rosto, tão importante como o nariz adunco, os olhos pequenos e amendoados e as rugas cada vez mais fundas e cavadas na pele manchada por sardas largas e irregulares. Ir sem batom até ao pequeno café da esquina, onde bebia a bica sem princípio há mais de três décadas, era idêntico a ir sem o rosto, sem a imagem de si para si e para os outros.

Depois do AVC tornou-se difícil pintar os lábios com a mesma precisão com que o fazia antes do acidente e, todavia, nunca pediu ajuda a nenhum dos filhos, já criados e com mais que fazer na vida do que se tornarem maquilhadores da mãe. Por isso, nos primeiros tempos depois do AVC, a tarefa, antes tão simples e rotineira, transformou-se num gesto hercúleo. Aprender a pintar os lábios com a mão esquerda não era pêra doce, mesmo para quem usara as mãos a vida inteira.

Muito os pacientes lhe gabavam as mãos. Recebera muitos presentes de pacientes — pinturas valiosas, vinhos de reserva, lenços de seda de marca. Nunca o fez pelos presentes, obviamente. Gostava do que fazia, tinha um orgulho imenso em si e na sua equipa. Salvara muita gente, e outros tentara, mas não fora bem-sucedida. Umas mãos hábeis, dir-se-ia que milagrosas. E agora, até o batom lhe parecia tão difícil. O corpo muda, disso estava certa. Tinha-o visto e comprovado com os pacientes e agora consigo, com o seu corpo. Primeiro sentiu revolta, o corpo não lhe obedecia, as mãos falhavam tarefas simples; como era possível? Mas, entre indignação e revolta, lá foi cumprindo a fisioterapia. Até conseguir voltar a pintar os lábios e, ao espelho, já não se sentir tão outra mas a mesma, embora mais frágil.

Nunca perdeu o brio. Arrastava-se com dificuldade para a fisioterapia, depois para o cabeleireiro e agora, já com autonomia, retomara as rotinas de bairro. Cabeleireiro às quintas — mãos e brushing. Sempre impecável. As roupas engomadas pela mulher-a-dias de há vinte anos, que se tornara uma amiga, alguém de confiança. O lenço de seda ao pescoço, os fatos tweed de saia-casaco caros, embora fora de moda, o batom rosa-escuro.

Não perdia o brio por si própria. Gostava de se arranjar. Mesmo que isso lhe custasse algumas horas. Tudo era feito com calma e cuidado, com amor e com dignidade por si própria, mesmo que fosse só para se ver ao espelho no café e reconhecer-se enquanto bebia uma bica.

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