O mundo nunca esteve tão insatisfeito com a democracia, diz a Universidade de Cambridge
Insatisfação é mais elevada nas democracias sólidas, como nos Estados Unidos e no Reino Unido. “As instituições democráticas têm falhado na resposta a algumas das maiores crises da nossa era”, dizem os investigadores.
A insatisfação com a democracia nos países mais desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos e no Reino Unido, nunca foi tão grande como agora, segundo uma investigação da Universidade de Cambridge conhecida esta quarta-feira.
O trabalho da universidade britânica é apresentado como o mais abrangente de sempre sobre o sentimento em relação à democracia como sistema político, feito em 154 países num total de quatro milhões de pessoas.
“Um pouco por todo o mundo, há um mal-estar geral em relação à democracia”, disse à BBC o autor do relatório, o investigador Roberto Foa.
“Constatámos que esta insatisfação com a democracia cresceu ao longo do tempo e está a atingir o nível mais alto de sempre, em particular nos países desenvolvidos”, disse o investigador.
Segundo o estudo do Centro para o Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge, a insatisfação com a democracia no mundo cresceu de 48% em 1995 para 58% em 2019.
"Mudança profunda"
Mas quando se olha para o aumento da insatisfação nos Estados Unidos e no Reino Unido, os valores são ainda maiores. Em relação aos países mais desenvolvidos, há estudos que remontam à década de 1970, pelo que o desenho traçado permite acompanhar as alterações à medida que foram acontecendo as grandes transformações das últimas décadas – a queda União Soviética, a crise financeira internacional de 2007-2008 ou o “Brexit”, por exemplo.
Nos Estados Unidos, o nível de satisfação com a democracia chegou aos 75% entre 1995 e 2005, o que coincidiu com o fim da Guerra Fria. Mas na última década, principalmente após a crise financeira, a satisfação caiu para menos de 50% – uma queda dramática superior a 25 pontos percentuais.
Robert Foa salienta que o “cinismo” em relação à democracia é habitual em alguns países, mas o aumento da insatisfação nos Estados Unidos “significa uma mudança profunda na forma como a América olha para si mesma”.
No caso do Reino Unido, a satisfação com a democracia manteve-se em níveis muito elevados desde a década de 1970 até poucos anos depois da entrada no século XXI (em 2005, os níveis de insatisfação não passavam dos 33%). Depois disso, a partir de meados da década de 2000, os níveis de insatisfação cresceram de forma significativa, acompanhando a crise financeira, mas também o escândalo das despesas parlamentares no país (em 2019, antes das eleições gerais, o nível de insatisfação com a democracia era de 61%).
Fim da “interpretação optimista"
Num estudo publicado em 2016 no Journal of Democracy – antes da eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos e do referendo sobre o “Brexit”, e ainda no auge da crise dos refugiados na Europa –, os investigadores já tinham identificado que “os cidadãos de democracias ricas e sólidas estão mais insatisfeitos com os seus governos do que alguma vez estiveram desde que há registos”.
“Muitos investigadores interpretaram isto como um sinal de insatisfação com determinados governos em particular, em vez de uma insatisfação com o sistema político como um todo. Olhando para os recentes estudos de opinião, sugerimos que já não é possível fazer-se essa interpretação optimista”, disse Robert Foa num artigo intitulado “O perigo da desconsolidação”, assinado em conjunto com Yascha Mounk.
O estudo da Universidade de Cambridge sugere que, para além do “choque económico global” de 2008, também o aumento da entrada de migrantes e refugiados na Europa, em 2015, contribuiu para a insatisfação com a democracia – reflectindo “falhanços de política externa”.
“Se a confiança na democracia tem diminuído, é porque as instituições democráticas têm falhado na resposta a algumas das maiores crises da nossa era, das crises económicas à ameaça do aquecimento global”, disse Robert Foa à BBC.
“Para que a legitimidade democrática seja restaurada, isso tem de mudar.”