“Serei tudo o que disserem: poeta castrado, não!”. Será tudo o que dissermos, sim, até um avião. As palavras de José Carlos Ary dos Santos estão em grande plano no palco, ao lado de uma das suas fotografias iconográficas. O rosto levemente caído, os olhos fixos na folha de papel, o cigarro na mão a arder. Atrás, um dos novos aviões da TAP, o A320Neo baptizado com o nome do poeta, que morreu fez 36 anos há poucos dias, a 18 de Janeiro.
No hangar 6 da “cidadela” da TAP no aeroporto de Lisboa, a cerimónia contou com muitas palavras comoventes e algumas lágrimas. Entre poemas declamados e discursos emocionados, a presença de familiares e amigos de Ary, incluindo o compositor Nuno Nazareth Fernandes, com quem co-assinou várias canções, e Fernando Tordo e Simone de Oliveira, que cantaram as canções que ele escreveu para eles, os clássicos Tourada e Desfolhada.
Uma “profunda alegria”, diria Tordo, que se confessou “muito emocionado”. “É uma coisa lindíssima, bela, pura, límpida”, ritmou o cantor, que diria à Fugas que com esta homenagem ao autor e obra, também transgressora, de Ary, “o país avançou mais um bocadinho”.
Autor de mais de 600 canções, militante comunista, homossexual assumido, foi uma figura de força, como o recorda a “amiga íntima”, Simone de Oliveira. Aos 82 anos, a cantora não conteve as lágrimas na homenagem, mas alegra-se com o facto de Portugal não esquecer Ary, porque é “preciso não esquecer a história”. Embora com muito medo de voos, tem uma esperança: “Só espero poder ainda voar no avião Ary dos Santos.”
A escolha do nome para o avião, diz-nos Miguel Frasquilho, o presidente do Conselho de Administração da TAP, “segue a linha dos baptismos” anteriores, de homenagear “portugueses relevantes” para a História de Portugal, nas mais diversas áreas. Entre os baptismos mais recentes, contam-se Jorge de Sena, Raul Solnado, Agustina, Carlos Paredes ou Zé Pedro.
“Uma merecida homenagem a um dos mais talentosos poetas contemporâneos” portugueses, disse o responsável, que assumiu “deixar vir ao de cima o seu lado festivaleiro” quando ouve os clássicos que se interpretariam no palco e que, até, ainda sabe “de cor e salteado”. Agora, sublinhou Frasquilho, “o nome do poeta voará ainda mais longe, voará ainda mais alto”.
De facto, embora a sua obra poética seja muito (muito) mais do que isso, foram especialmente os poemas para canções do festival que deram fama maior a Ary. Quatro delas foram representar o país na Eurovisão — além da Desfolhada e Tourada, Menina do Alto da Serra e Portugal no Coração. Agora, em vez das canções, Portugal vai enviar para os céus da Europa o avião José Carlos Ary dos Santos.
Um destino que quase se poderia dizer traçado muito cedo na vida do autor de outros clássicos do cancioneiro português como Lisboa Menina e Moça, Estrela da Tarde ou Cavalo à Solta: o seu primeiro livro, lançado aos 14 anos, como lembraram (e declamaram) os familiares Fátima e Bernardo Ary dos Santos, chamava-se Asas e nele podiam ler-se versos como este, profético, “Abrindo ao vento as asas da alegria, eu vou partir”.