“Sem qualquer admissão de culpa”

Uma das revelações mais inesperadas (ou talvez não) dos “Luanda Leaks” é a extensão inusitada em Portugal do fenómeno de cobardia e hipocrisia moral suscitadas pelo dinheiro.

Foto
Isabel dos Santos Reuters/TOBY MELVILLE

Um dos advogados portugueses de Isabel dos Santos, em carta divulgada há dias a propósito da renúncia à representação da sua cliente, da saída da sociedade de advogados a que pertencia e até da suspensão temporária do seu exercício da profissão, explica que o fez para não prejudicar terceiros, embora “sem qualquer admissão de culpa”. Ora, pelo que temos visto, esta última expressão poderia ser comum a muitos dos que em Portugal – advogados, empresários, banqueiros e outros –, depois da aparatosa divulgação internacional dos Luanda Leaks, decidiram cortar os vínculos que os ligavam à “mulher mais rica de África”. Como se, no fundo, nunca tivessem nada a ver com ela e tivessem sido apanhados de surpresa por um escândalo a que seriam estranhos.

Nenhum dos negócios que Isabel dos Santos realizou em Portugal, erguendo um pequeno império numa espécie de “vingança” em relação ao passado colonial, teria sido possível sem a colaboração estreita, a cumplicidade e a dedicação – ou até o mero servilismo – dos seus associados portugueses. Cada qual no seu campo respectivo empenhou-se, no fundo, para que as ramificações dos negócios da filha do presidente de Angola durante quase quatro décadas frutificassem em Portugal em benefício de Isabel dos Santos e associados. Por isso, das duas uma: ou os “Luanda Leaks” são produto de uma calúnia de proporções gigantescas e uma terrível caça às bruxas promovida pelo actual Governo angolano como álibi para justificar a gravíssima crise económica em que se encontra o país – é essa, no fundo, a tese defensiva de Isabel dos Santos – ou a teia de relações que a empresária construiu em Portugal não foi de todo estranha aos esquemas cleptocráticos, familiares e estatais que estão na origem da sua fabulosa riqueza.

Neste caso, os seus agentes e colaboradores – entre os quais se contam as sociedades de advogados ou empresas de reputação presumivelmente intocável como a PWC – que arquitectaram e sustentaram o desenvolvimento da rede de negócios e jogos de interesses mais ou menos obscuros de Isabel dos Santos em Portugal, foram dela cúmplices no plano material, moral e eventualmente criminal. Sendo assim, a sua hipócrita atitude auto-desculpabilizante face às evidências dos “Luanda Leaks” atinge as raias do descaramento mais consumado. Eles não receiam, sequer, desafiar a mais elementar verosimilhança, ao fingirem não saber aquilo que até a mais cândida e crédula das criaturas achará que não podiam deixar de saber – e de ter responsabilidades activas na matéria.

É também por tudo isso que este caso assume uma dimensão verdadeiramente exemplar: mesmo quando o “striptease” das responsabilidades e cumplicidades está consumado à vista de todos, o padrão de comportamento de quem tem culpas no cartório é, precisamente, o de recusar “qualquer admissão de culpa” (embora sabendo que ninguém, rigorosamente ninguém, nem sequer os parvos mais irrecuperáveis, acreditará nessa “desculpa”). É aí que o mundo do dinheiro, da avidez e da sofreguidão pelo dinheiro, mostra a sua face mais grotesca: por causa do dinheiro até as mais patéticas e inverosímeis encenações se justificam, sobretudo quando se corre o risco de perder tudo, incluindo a vergonha mais elementar. Uma das revelações mais inesperadas (ou talvez não) dos “Luanda Leaks” é a extensão inusitada em Portugal do fenómeno de cobardia e hipocrisia moral suscitadas pelo dinheiro. Neste caso, o de Isabel dos Santos. Mas poderia ser o de outros como ela.

Sugerir correcção