Numa das minhas curtas viagens de autocarro de casa para o jornal, de Vila Nova de Gaia para o Porto, observo um senhor que aparenta cerca de 90 anos e vai sentado nos lugares da frente, destinados a pessoas com mobilidade reduzida. Parece-me perturbado, senil até, porque fala sozinho, conversa e gesticula consigo mesmo, a ponto de a senhora sentada mesmo à sua frente, no vulgarmente chamado “lugar gordo”, fazer de conta que era com ela que o senhor dialogava.
O sinal de stop é accionado e o autocarro imobiliza-se numa paragem junto a um centro de Saúde. Alguns passageiros idosos, denunciando algumas maleitas, entram, e um deles, que mal caminhava, rezingão, de voz estrondosa, diz alto e bom som: “Ó senhor motorista, espere um bocadinho que eu me sente...”
Valida o seu passe social, ensaia uns passos com uma canadiana numa mão e um guarda-chuva noutra, a servir de muleta, e lança-se numa das cadeiras reservadas à sua condição. Quase cai sobre o colo do cavalheiro que fala sozinho, agora seu companheiro de assento nesta viagem. As portas automáticas fecham-se e o autocarro arranca.
O passageiro que acaba de se sentar esboça uma conversa com a pessoa ao seu lado, tão audível como se a sua voz viesse dos altifalantes do autocarro: “Olhe se eu caísse... já não tenho pernas! Venho agora do centro de saúde e estava lá desde as 10h00. O senhor nem imagina, tenho o azar de ter uma médica burra e um médico também burro, não acertam com a minha medicação e já lhes disse várias vezes que não era aquela! Não saio daquele centro de saúde e amanhã lá terei que voltar. Acredita?”
O cavalheiro que falava sozinho interrompe as suas divagações, indignado, e interroga: “Mas... então, se os seus médicos são assim tão burros, porque é que o senhor lá vai, se até já conhece o seu próprio diagnóstico?”
“Porque não me posso automedicar, mas ainda cá estou, não fosse o raio das pernas!”, respondeu o senhor que acabava de se sentar, deixando transparecer um início de irritação por falta de cumplicidade pelo que acabara de ouvir.
Continua o seu interlocutor: “O cavalheiro e eu somos tão antigos quanto aquele tempo em que havia o respeito que hoje falta! Concorda comigo? Entretanto, está a faltar ao respeito a quem cuida da sua saúde. Ora, diga-me por que é que lá vai, se o senhor é melhor que os seus médicos?! Se fosse a si, em vez de maldizer os médicos, agradecia ao Serviço Nacional de Saúde por ainda cá andarmos...”
“Parece-me que o senhor está a gostar da conversa. Senão, estaria calado. Meta-se mas é na sua vida, que eu trato da minha!”, afirmou, mal-humorado, como quem arruma a guitarra, o senhor da canadiana e do guarda-chuva a fazer de muleta, e foi assim, calado e corado, até ao fim da viagem, enquanto o cavalheiro que falava sozinho voltava a mergulhar nas suas divagações, momentaneamente interrompidas por tamanha indignação.
Volto-me na direcção de um som de algo que parece prestes a partir-se. São umas garrafas de vinho a tilintar num saco de plástico acomodado sobre o espaço reservado para as malas, mas bem seguras pelas mãos de uma senhora, de 80 e tal anos, em pé, mesmo ao meu lado. Pelo esforço que fazia, não estava também lá muito bem das pernas. Do outro lado, no banco oposto ao do motorista, está um jovem sentado com auriculares, certamente imerso na sua música, enquanto troca mensagens e permanece completamente alheio ao ambiente no veículo que o transporta.
Mais uma paragem, mais uns passageiros e, curioso, um jovem casal com o seu “rebento”, acomodado num carrinho, aguardava pelo autocarro, mas não pôde embarcar. O minúsculo lugar assinalado no chão com o desenho de uma cadeira de rodas, que serve também para quem transporta crianças em carrinhos, já se encontrava ocupado por uma mãe que, para transportar o seu bebé em segurança, desalojara na paragem anterior uma idosa e um idoso com mobilidade reduzida.
Uma outra passageira, ao desequilibrar-se devido aos movimentos pouco confortáveis quando o autocarro se põe em marcha, inicia o seu discurso para si mesma e para todos: “Estes novos autocarros foram feitos por engenheiros que não têm avós e nunca transportaram uma criança num carrinho. Nem sequer temos onde nos agarrar senão uns aos outros. Lá atrás é que eu não vou! Só de pensar em caminhar neste corredor sem espaço e ainda ter que subir aqueles degraus... Ai, os antigos...”
Na paragem seguinte entra um jovem casal com as suas malas. Rapidamente as acomoda no espaço adequado e se desloca para os lugares de trás do autocarro, saltando acrobaticamente pelos degraus. O jovem motorista abre a cancela do seu posto de comando e em pé, sem nunca se livrar do volante do autocarro, questiona num inglês fluente: “Your tickets, please?”
Lá do fundo, entre os que tiveram que ter em atenção os degraus antes de se sentarem, uma voz grave, masculina e convicta, responde: “We already bought it!”
“May you show me, please?”, retorquiu o jovem motorista.
Ela remexeu nos bolsos, levantou-se de rompante e saltou os elevados degraus junto à porta de saída do novíssimo e ecológico autocarro, dirigindo-se pelo estreito corredor à cabina do motorista, onde lhe exibiu um bilhete. O motorista informa: “Sorry, but this ticket is for the Hop-on, Hop-off, Porto. It’s for a tour on Porto City, and this is a normal bus!”
Accionei o sinal de paragem e só tive tempo de ver a jovem desembolsar quatro euros e regressar muda ao seu lugar.
Afinal, a vida, como aprendi com este cavalheiro idoso de há pouco, é uma fila em que cabe, a cada um de nós, a vez de passar por um torniquete que nos elevará à nossa insignificância.