Bombshell, o filme de Charlize Theron sobre assédio, vai ser debatido em Lisboa
Depois da série The Loudest Voice, o escândalo de Roger Ailes na Fox News é um filme que se estreia esta quinta-feira em 60 salas portuguesas. Quinta e sexta-feira há debates no El Corte Inglés sobre assédio sexual.
Imagine-se um homem com a mão num comando à distância. Com um dedo, manipula a informação sobre o pós-11 de Setembro, a invasão dos EUA no Iraque ou a criação do fenómeno político Donald Trump no canal conservador Fox News. Com outro, assedia e viola várias mulheres que trabalhavam sob a sua alçada, tecendo parte da esteira que levou à galvanização do movimento #MeToo. Esta quinta-feira, esta história real chega ao cinema com Charlize Theron, Nicole Kidman e Margot Robbie a enfrentar John Lithgow a dar corpo ao vilão Roger Ailes e aos duros contornos do assédio sexual. Logo a seguir às sessões de quinta e sexta-feira em Lisboa, há debates sobre o tema com figuras dos media, cinema e apoio à vítima.
Bombshell – O Escândalo, que se estreia em 60 salas portuguesas em plena temporada de prémios com Theron e Robbie nomeadas para os Óscares nas categorias de actuação, é um projecto de uma produtora-actriz-activista.
Charlize Theron, cuja transformação na jornalista norte-americana Megyn Kelly é notável (e em parte creditada ao artista de caracterização Kazu Hiro), é produtora do filme e sua estrela, dando rosto a uma mulher que rejeita o rótulo de feminista e defendeu no passado o “blackface" e outras retóricas racistas, mas que enfrentou Trump e, depois disso, meses de ataques sexistas. E que hesitou em juntar a sua voz à da denunciante original, Gretchen Carlson (Kidman), ambas inspirando uma personagem não baseada em figuras reais interpretada por Robbie mas sobretudo, num trio simbólico, das dificuldades em identificar, denunciar e sobreviver ao assédio sexual — e, até certo ponto, são mulheres que exemplificam que não há um só único retrato, situação ou tipo de vítima.
“Têm uma bagagem ideológica que complica o Santo Graal de Hollywood — a capacidade de nos identificarmos” com as personagens/heroínas, como resume a crítica de cinema do New York Times Manohla Dargis. “É que o sexismo não discrimina”, resume a jornalista. À esquerda, à direita, entre homens e mulheres, insinuações, chantagens ou apalpões, as letras com que se vivem, escrevem e filmam as histórias de assédio são grosseiras.
Para debater essas e outras questões suscitadas pelo filme — e que a série The Loudest Voice, da Showtime (disponível na HBO Portugal), já tinha explorado mais demoradamente no Verão passado, mas lá iremos — a associação Zero em Comportamento e a distribuidora Pris Audiovisuais organizaram dois debates, nas noites de 23 e 24 de Janeiro, no El Corte Inglés em Lisboa. Logo após as sessões das 21h30 (o filme tem cerca de 1h50m), no dia 23 haverá discussões sobre “Os problemas de assédio nos bastidores” com a realizadora, argumentista e produtora Raquel Freire, com a apresentadora e presidente da Associação Nuvem Vitória Fernanda Freitas, e com o jornalista da TVI24 e professor Marcos Pinto; na sexta-feira terá lugar o debate “Como identificar e denunciar casos de assédio”, com a psicóloga e técnica da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima Isabel Cabacinho.
A cultura interna da Fox
O filme, sem que fosse esse o plano, tornou-se “uma história de origens do movimento” #MeToo, disse há meses Charlize Theron à BBC. O caso Roger Ailes culminou em Julho de 2016, quando Carlson, uma das apresentadoras-estrela do canal de notícias conservador Fox News, acusou o responsável pela criação do canal de Rupert Murdoch de assédio. Em poucos dias, várias outras mulheres contaram as suas histórias, que remontavam a décadas de abusos, retaliação, chantagem e tratamento sexista de Roger Ailes nos seus locais de trabalho.
Os sete episódios de The Loudest Voice detalham, não só pela sua duração mas também pelo seu foco na figura do ex-consultor político de Richard Nixon e Ronald Reagan, muito mais sobre a figura poderosa que estendia o mesmo nível de manipulação à narrativa noticiosa. A Fox News endossou a tese da existência de armas de destruição maciça no Iraque, deu voz à teoria da conspiração de que Barack Obama não nasceu nos EUA e fundiu opinião, câmaras apontadas às pernas das suas apresentadoras e noticiários bombásticos num pacote de sucesso. Bombshell – O Escândalo centra-se em Kelly, com Carlson e a Kayla Pospisil de Robbie a orbitar num edifício controlado por um Roger Ailes cujo lado político é menos claro do que o seu toque de Midas de programador.
A “bombshell” são as suas funcionárias loiras e o escândalo que pôs fim à sua vida profissional menos de um ano antes de o cancro o vitimar. Também uma “bombshell", uma notícia bombástica, foi o final do seu reinado. Um título de duplo sentido para um caso cheio de duplicidades: as audiências eram tanto o objectivo de vida de Ailes quanto o eram os encontros, as audiências que concedia em salas trancadas electronicamente por uma secretária fiel, com as mulheres sobre quem exercia poderio laboral e físico.
O filme é realizado por Jay Roach (Trumbo), escrito por Charles Randolph (A Queda de Wall Street) e centra-se mais, como escreveu Alison Willmore no site Vulture, “na cultura interna [da Fox News] do que no produto que o canal dá ao mundo”. Como filme que mostra a antecâmara do movimento #MeToo, hashtag revitalizada após o caso Weinstein em Outubro de 2017, Bombshell – O Escândalo é voluntária e involuntariamente um filme #MeToo como The Loudest Voice, com Russell Crowe e Naomi Watts na pele de Ailes e Carlson como verdadeiros protagonistas, se tornou também uma série sobre uma história americana irresistível que encontrou um novo contexto mediático, cultural e social.