Veredicto abre a porta a protecção para “refugiados climáticos”
ONU diz que quem foge por efeitos das alterações climáticas não pode ser obrigado a voltar, se correr risco de vida. É a primeira vez que uma decisão aponta para a possibilidade de pessoas afectadas pelo clima receberem protecção internacional.
Foi uma má notícia para um homem, mas uma boa notícia para a sua causa: o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas deu razão ao Supremo Tribunal da Nova Zelândia, que recusou o pedido de asilo do homem que ficou conhecido como o “primeiro refugiado climático do mundo”. Mas ao dizer que é ilegal devolver aos seus países pessoas cujas vidas estejam ameaçadas pelos efeitos das alterações climáticas o Conselho abriu, pela primeira vez, a porta a uma futura protecção destas pessoas.
A organização de defesa de direitos humanos Amnistia Internacional fala de um “precedente global”.
A Comissão pronunciou-se sobre um caso antigo: o de Ioane Teitiota, de Kiribati, um arquipélago de 33 atóis de coral no Pacífico, que pediu asilo à Nova Zelândia em 2013 e se tornou, entretanto, um improvável símbolo dos “refugiados climáticos”, que apesar de serem assim chamados não têm direito a pedir asilo nem qualquer opção para obter o estatuto de refugiado.
Apenas quem foge de guerra, perseguição, ou violência devido à sua raça, etnia, religião, ou pertença a determinado grupo pode ser considerado refugiado, segundo o estatuto que data de 1951. Os efeitos do clima, mesmo que possam ameaçar a vida, não são considerados – pressupõe-se que haja acção humana contra quem pede o estatuto de refugiado e este foi o fundamento das decisões de vários tribunais, um recurso após o outro, na Nova Zelândia.
Teitiota vivia na Nova Zelândia desde 2007 e manteve-se no país até depois de o seu visto ter expirado em 2010. Lá nasceram, entretanto, os seus filhos. Depois de deixar acidentalmente expirar o seu visto temporário, em 2013 consultou um advogado que decidiu não pedir a extensão do visto e sim pedir o estatuto de refugiado argumentando que a sua vida, e da sua família, estava em risco caso regressassem a casa. O pedido foi recusado e Teitiota foi repatriado em 2015, mas o advogado continuou a recorrer da decisão judicial.
Kiribati é considerado um dos países mais ameaçados pela subida das águas do mar, que deixam o que eram antes águas pouco profundas, límpidas e com peixe, em misturas quase lamacentas em que não há nada para pescar, nota a revista Foreign Policy num artigo sobre a saga legal de Teitiota e o seu advogado.
Além disso, a falta de água fresca faz com que seja difícil cultivar o que quer que seja, e a salinidade da água também é um problema, levando à falta de água potável. A ilha de South Tawara, onde está a casa de Teitiota, está a concentrar cada vez mais pessoas em fuga dos outros atóis que estão a tornar-se inabitáveis – a população aumentou de 1641 pessoas em 1947 para 50 mil em 2010.
O último recurso de Teitiota, hoje com 39 anos, no Supremo Tribunal da Nova Zelândia falhou, e o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas deu agora razão ao veredicto, argumentando que o espaço de tempo estimado para a ameaça – 10 a 15 anos – ainda permite que “o Governo de Kiribati, com ajuda da comunidade internacional, tome medidas para proteger e, onde necessário, recolocar a sua população”, cita o Guardian.
Apesar de na prática recusar o caso de Teitiota, vários peritos dizem que a decisão abre caminho para uma futura protecção das pessoas ameaçadas pela emergência climática, ao dizer que “os efeitos das alterações climáticas nos estados estados podem expor os indivíduos a uma violação dos seus direitos (…) e assim provocando a obrigação de ‘non-refoulement’ [não reenvivo para o país de origem mesmo que a presença no país actual seja ilegal]”.
"O primeiro aviso"
“A nível pessoal para Ioane e a sua família é uma péssima notícia, porque obviamente foi decidido que o seu argumento de que a sua vida estava ameaçada em Kiribati não era suficientemente forte”, reagiu Kate Schuetze, da Amnistia internacional, citada pelo Guardian. “Mas depois [o Conselho de Direitos Humanos da ONU] fez algumas declarações fortes sobre as responsabilidades dos Estados”, que “podem levar a estabelecer uma responsabilidade internacional de outros governos não enviarem as pessoas para locais onde a sua vida esteja em risco por mudanças provocadas pelo clima”.
Num comunicado da Amnistia Internacional, Schuetze apontou “cerca de uma dúzia de casos no sistema judicial da Nova Zelândia com casos semelhantes ao de Teitiota, a maioria de Kiribati e de Tuvalu. “As ilhas do Pacífico são o primeiro aviso para a migração induzida pelo clima.”
Jane McAdam, directora do centro Kaldor para lei internacional de refugiados na Universidade de Nova Gales do Sul, chegou a pôr a hipótese de os habitantes de Kiribati ou Tuvalu ficarem, na prática, apátridas, porque os seus países, poucos metros acima do nível da água do mar, podem literalmente desaparecer, lembra a Foreign Policy.
Reagindo à decisão da Comissão, Jane McAdam nota, num artigo sobre a decisão no jornal Brisbane Times, que apesar de não ser vinculativa, mas as obrigações legais em que se baseia são.
“O que é realmente importante, e por isso é um marco, é que o Conselho reconheceu que sem acção robusta, em alguma altura os governos poderão, no âmbito da lei humanitária internacional, ser proibidos de enviar pessoas para locais onde a sua vida esteja em risco ou onde possam enfrentar tratamento desumano ou indigno”, sublinhou a especialista. “Mesmo que neste caso não tenha sido encontrada uma violação, deixa os governos de aviso.”
McAdam escreveu ainda que a Comissão diz que as pessoas em risco não devem ter de esperar até uma ameaça iminente. Um membro da Comissão declarou que “seria contraditório para a protecção da vida esperar que haja mortes frequentes e consideráveis” para considerar que o limite do risco tinha sido ultrapassado.
Mas, concluiu a Jane McAdam, o que o veredicto deixa indefinido é qual é o ponto de viragem em que há uma ameaça suficientemente grave para ser obrigatória a protecção.