A nova década de 20 – os loucos anos voltaram

Passada a crise que marcou as últimas décadas, é tempo da rutura e da revolta de um mundo que colapsa quando se reduzem seres humanos a objetos de direito e não a sujeitos de direitos.

O centenário dos roaring twenties, année folles, ou simplesmente os loucos anos que marcam a chamada década de XX (1920) encontram no seu novo decénio um cenário político que promete ser o início de uma nova era de ruturas democráticas, conservadorismo, tensões, mas também de resistência. Do recém surgimento dos EUA como nova potência, uma Europa ainda fragilizada com as consequências da I Guerra Mundial, o surgimento do fascismo na Itália, o salazarismo em Portugal e a crise de 28 que levaria Hitler ao poder – até chegarmos até aqui muito mudou, e tanto ainda falta.

A crise do Estado de bem-estar social que se arrasta desde meados dos anos 80 já não se sustenta. A pacificação das lutas sociais dentro do capitalismo, com as suas demandas de mobilidade social que por muito tempo apaziguaram a classe trabalhadora, foram solapadas por refluxos neoliberais insaciáveis que visam não só a garantia de lucros, mas a domesticação de seres humanos de “segunda classe”.

Assim, repensar as estruturas do capitalismo é compreendê-lo não só como um modo de produção ou uma economia, mas como uma ordem social que visa estabilizar relações de dominação. Em ambos os casos, a crise é pensada de modo dialético, como decorrência de contradições imanentes até aos processos históricos de desenvolvimento. Acontece que a crise não só abriu espaço para o surgimento de novas estruturas fascistas, e/ou religiosas ultrarradicais no seio das democracias, como deixou um vazio de sentido político que teve como consequência não só a alienação, mas também o domínio e escárnio imperialista dirigido a outros povos e/ou classes, em detrimento de minorias económicas hegemónicas.

A filósofa Nancy Fraser, em Legitimation crisis? On the political contradictions of financialized capitalism, remete-nos para a crise do modo como a economia capitalista, ao se reproduzir, termina desestabilizando-se e pondo em risco as suas próprias condições de possibilidade, sendo que são estas contradições que dimensionam o impacto do vazio social e político que vivemos.

Passada a crise que marcou as últimas décadas, é tempo da rutura e toda a cisão gera dor: é a dor dos que têm fome; dos que valem menos que o lítio na Bolívia; dos que não têm acesso a direitos básicos no Haiti; dos cidadãos de Hong Kong que não aceitam estar subjugados a um controverso projeto de lei que permite a extradição de suspeitos de crimes para a China continental; dos revoltados com a violência e pobreza gerada pelo modelo socioeconómico neoliberal no Chile; da população negra vítima de genocídio étnico nas periferias do Brasil; dos cidadãos franceses enfurecidos com Macron e com suas políticas que atacam a classe trabalhadora; dos cansados da utopia de uma União Europeia que já não responde às demandas sociais dos seus cidadãos mais empobrecidos.

É a dor, mas é também a revolta de um mundo que colapsa quando se reduzem seres humanos a objetos de direito e não a sujeitos de direitos. Cansados de serem representados por governos “filantropos”, que supostamente sabem mais das suas necessidades do que eles próprios, surge a insurgência de povos que, exaustos do cenário biopolítico instaurado, entram num embate político, mas também ontológico na busca por tornar-se humano fora do estado da animalidade.

O que virá? Só o tempo poderá dizer. Certo é que, como diria a filósofa e economista Rosa Luxemburgo, “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem"; ou, como diria o grande escritor brasileiro Guimarães Rosa,  “A vida (…) O que ela quer da gente é coragem…”

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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