Uma performance para o caos e para o ritmo de José Gil
A incerteza do mundo contemporâneo, aprofundada na mais recente obra do filósofo, inspira a coreografia de palavra dita, som e imagem que este sábado se apresenta em Guimarães, no âmbito da edição 2020 dos Encontros para Além da História.
Foi a partir das reflexões sobre o vazio, o inconsciente e os lugares que aqueles ocupam no mundo contemporâneo vertidas em Caos e Ritmo (2018), o mais recente livro do filósofo José Gil, que Nuno Faria idealizou a performance que dá corpo aos Encontros para Além da História deste ano; uma amálgama de “palavra dita, som e imagem”, com intervenientes de várias áreas do conhecimento, que se apresentam este sábado, pelas 15h, no palco da black box do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG), em Guimarães. “O livro é, para mim, uma grande influência”, refere ao PÚBLICO o curador, que foi director artístico daquele espaço entre 2012 e 2019. “A partir da reflexão sobre caos e ritmo, debate questões ligadas à ecologia, aos poderes do corpo, à arte e à magia, numa altura em que vivemos sob a ameaça do colapso ecológico e ambiental.”
Convicto de que este livro do autor de As Metamorfoses do Corpo (1981) ou Portugal Hoje – o Medo de Existir (2004), é um “legado para as gerações do tempo presente” que “dá chaves para a leitura da realidade, mas também orientações para a própria vida”, Nuno Faria descreve a por si designada (e convocada) curadoria-coreografia para José Gil como uma “voz que continua a convocar a palavra poética, a soprar e a respirar” perante o “iminente desaparecimento do mundo contemporâneo”.
A performance, de entrada gratuita (até ao limite da lotação do espaço, de 198 lugares), far-se-á, porém, a várias vozes, oriundas de diferentes frentes do conhecimento, reconhece o programador artístico, hoje à frente do projecto do Museu da Cidade do Porto. A “palavra dita”, foi buscá-la à escrita de Catarina Santiago Costa, António Poppe, Alexandra Lucas Coelho e Luís Quintais, poeta que é também professor de antropologia, área que se fará representar ainda por Eglantina Monteiro.
Os textos ecoarão a partir de uma peça escultórica em cânhamo queimado, concebida como púlpito pelos SKREI, dupla de arquitectos que explora a questão da arquitectura sustentável. Toda essa evocação, diz Nuno Faria, dialogará com as atmosferas sonoras e visuais criadas por Hugo Canoilas, Francisco Janes e a dupla com(1), constituída por Tomás Cunha Ferreira e Domenico Lancelotti.
Para Tomás Cunha Ferreira, o trabalho criado pela dupla encaixa-se na categoria do som, mas é também “poema visual”. Esse registo acaba por se enquadrar bem na obra de José Gil que a inspira, acrescenta ao PÚBLICO: “O caos é um banquete de sensações, de ideias, de situações onde nos podemos alimentar para criar. É aí que podemos encontrar o ritmo, uma certa cadência.”
A dupla com(1) surgiu após a mudança de Domenico Lancellotti do Brasil para Portugal há menos de um ano. A residir em Lisboa, o artista plástico e músico, que já colaborou, entre outros, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, afirma ao PÚBLICO que a paisagem audiovisual deste sábado, combinação de sons gravados e sons produzidos na hora, a partir de baterias electrónicas e cantos indígenas, por exemplo, é uma “cola” que unirá as várias manifestações sobre o palco.
Os Encontros para Além da História surgiram em 2012, ano de inauguração do CIAJG, para servirem de “escrutínio crítico” à exposição permanente – Para Além da História apresenta as colecções de arte tribal africana, arte arqueológica chinesa e arte pré-colombiana reunidas por José de Guimarães – e à sua relação com o colonialismo, diz Nuno Faria. Esse escrutínio transformou-se a partir de 2017, com a reflexão sobre a obra de Herberto Hélder. “A performance, a exposição e a dimensão de conferência passaram a estar reunidas numa coisa só”, explica o curador.
Evocar Mumtazz
A curadoria-coreografia deste sábado inclui ainda o módulo (ar sopro palavra), dedicado a Mumtazz (Andrea Martha), artista visual e poetisa que morreu no ano passado; o CIAJG apresentou, aliás, a exposição antológica da sua obra, Hilaritas/Ascensor d’Mente, em Outubro de 2017. A criadora vai ser recordada por Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora, e por António Poppe, poeta e artista que era amigo de Mumtazz há 30 anos, desde o tempo em que estudaram juntos no ar.co, em Lisboa. “Escrevemos e desenhámos juntos. Ela dizia que éramos irmãos siameses”, lembra.
António Poppe evocará a amiga através da leitura de um poema inédito, que estavam a escrever a duas mãos desde 2000, O Agitador e a Corrente. “É uma síntese do que escrevemos, com os versos mais vibrantes, que exprimem mais significados”, descreve. “A Mumtazz sempre partiu da diferença e da diversidade para encontrar as semelhanças e aprofundá-las. Isso encontra-se neste poema.”