Entre músicos, traficantes e strippers: o retrato do trap, em Atlanta
Nasceu nos bairros pobres de Atlanta, no sudeste dos EUA, e hoje um dos géneros musicais mais populares do mundo. O fotógrafo francês Vincent Desailly retratou o berço do trap, onde a música, o sexo e o tráfico de droga dominam o quotidiano.
Nos Estados Unidos, trap é jargão para local de venda de droga. O significado literal da palavra é armadilha: uma entrada, nenhuma saída. Nenhuma saída da pobreza, do racismo, do vício, do tráfico, da prisão. A cidade de Atlanta, no estado da Geórgia, é campeã da desigualdade económica dos EUA. Por ser um ponto nevrálgico de conexões rodoviárias interestaduais, e por ser relativamente próxima da fronteira com o México, tornou-se também num grande centro de distribuição de droga do país.
É neste contexto que nasce o trap, um subgénero do hip-hop, cuja popularidade não pára de crescer desde os inícios de 2000. Com DJ Toomp e Shawty Redd como precursores, o trap atinge o primeiro pico de popularidade nos primeiros anos da década com os beats de T.I., Gucci Mane e Young Jeezy, sempre prontos a disparar letras repletas de histórias pessoais e familiares conturbadas, relacionadas, em muitos casos, com o tráfico de droga.
O fotógrafo francês Vincent Desailly, natural de Paris, viajou até Atlanta a convite de um amigo rapper de longa data, Louis Brodinsky, que se notabilizou como DJ de música electrónica e que, há cerca de quatro anos, mergulhou profundamente no estilo trap. “Ele ia lá a cada dois meses para fazer música e conhecia muita gente”, contou ao P3, em entrevista. “Disse-me que devia ir com ele.” A realidade que encontrou em Atlanta, em Janeiro de 2018, foi tão intensa que decidiu abraçar um projecto fotográfico de longo termo.
No berço do trap, Desailly retratou traficantes, músicos, strippers e residentes das áreas empobrecidas de onde saíram alguns dos artistas mais proeminentes do género. Nas imagens do fotolivro The Trap, que foi lançado em Novembro de 2019 pela editora Hatje Cantz, as armas estão bem visíveis, assim como a droga que é pesada e separada sobre as mesas; são elementos quotidianos nos bairros da cidade, onde também proliferam as casas de strip que, não raramente, figuram nos videoclipes dos artistas de trap. E que passam para a música.
“Quando penso em trap, penso em algo cru. Em algo que não foi diluído. Algo sem verniz”, escreve Gucci Mane no prefácio. "Música que soa exactamente como o mundo de onde ela saiu.” Um universo duro, violento, dramático, mas vibrante. Os retratos que Desailly reúne no seu fotolivro revelam a vida de jovens como Mane, que aos 13 começou a vender cannabis, aos 15 crack e aos 18 estava na prisão, a cumprir a primeira pena por tráfico de droga. Jovens que são reféns de um ciclo vicioso que os obriga a crescer cedo demais – e que tem por raiz a pobreza.
Foi a atitude das pessoas, a sua autoconfiança, o que mais impressionou o fotógrafo. “Acho que é graças a isso que [em Atlanta, as pessoas] se tornam tão criativas num ambiente tão duro”, reflecte. “A vontade de vencer aliada à sua cultura local, que é rica, torna-as especiais.” É palpável. “Todos, desde os miúdos de 14 anos até às avós, são extremamente estilosos. Cabelo, roupa, atitude... Existe uma vibe real, mas só nas pessoas. Nos edifícios, nos interiores, tudo é bruto.” Esse contraste tem reflexo na música trap, na opinião de Desaily, que a descreve como “suave, brutal e, definitivamente, magnética”.
Embora esteja categorizado, genericamente, como hip-hop, o trap mistura também dub e dance, como descreve a plataforma especializada Run The Trap. E está intimamente ligado às históricas caixas de ritmos Roland TR-808, que foram um flop de vendas aquando do lançamento no início dos anos 80 por causa da falta de autenticidade dos seus sons — há mesmo quem jure tê-las visto, em Atlanta, abandonadas em contentores do lixo. O stock acumulou-se nas lojas, os preços baixaram vertiginosamente e os rappers apoderaram-se delas. Abraçaram a sua artificialidade e o trap nasceu, estando presente, de forma subliminar, em produções de músicos tão populares como Miley Cyrus, Beyoncé ou Rihanna.
Desailly habitou, temporariamente, este mundo particular, talvez perigoso, mas relativiza. “Como na maioria dos países do mundo ocidental, nos Estados Unidos existem enormes diferenças no que toca à qualidade de vida dos cidadãos. Não diria que fotografei uma realidade marginal porque, infelizmente, este é um tipo de contexto demasiado trivial naquele país.”