Quando o primeiro-ministro nos reflecte na perfeição
Ainda não foi desta que o primeiro-ministro anunciou que os membros do Governo passarão a andar de transporte público ou de bicicleta em Lisboa. Apesar de sabermos, todos, que precisamos de depender menos do automóvel.
O anúncio do primeiro-ministro português, em pleno arranque da iniciativa “Lisboa, Capital Verde Europeia”, de que já a partir de Fevereiro o Governo vai passar a deslocar-se em veículos eléctricos, na Área Metropolitana de Lisboa, tinha tudo para ser um sucesso. Não houvesse um holandês a seu lado para, num curto comentário, esvaziar aquele gesto ao mesmo tempo tão inócuo e tão significativo do nosso chefe de Governo.
Apesar de acossado aqui e ali pelo movimento ambiental, por algumas decisões controversas, António Costa não precisava de descarbonizar a frota do executivo para mostrar que este Governo é mais “verde” que os seus antecessores. Sobre isso não tenho dúvidas. O governante que nos colocou perante o compromisso de sermos um país neutro em emissões de gases com efeito de estufa em 2050 apenas deixou transparecer, com uma frase, o que (ainda) distingue os portugueses (o problema não é só do primeiro-ministro), dos holandeses ou dos dinamarqueses, entre outros.
E o que mostrou ele afinal? Que por cá, o automóvel não é apenas o melhor meio de deslocação para conseguir cumprir uma agenda ministerial intensa. Por cá, o automóvel é, como sempre tem sido, um símbolo de status, de poder. Salvo raras excepções, Portugal ainda está longe de ver ministros ou secretários de estado, ou até autarcas, a chegarem habitualmente aos seus compromissos em transporte público ou a pé, e muito menos de bicicleta, como sugeriu o vice-presidente da Comissão Europeia, o holandês Frans Timmermans, quando ouviu o anúncio de Costa. Seria ridículo. Não sou eu que o digo. São eles que, mesmo não o pensando, agem como se o pensassem, numa Lisboa com cada vez mais quilómetros de ciclovias. E isso, simbolicamente, diz-nos muito.
O Governo de Costa estimula-nos a trocar automóveis poluentes por automóveis que, pelo menos em andamento, poluem menos as cidades. Mas isso não só continua a ser algo caro, como é insuficiente. Da mesma forma, não chega baixar o custo dos transportes públicos. Portugal não precisa apenas que os pobres e remediados possam andar de autocarro sem derreter o dinheiro que não têm. Portugal precisa que quem tem um, dois ou três carros veja o transporte público como o modo preferencial para se deslocar.
Só assim seremos poupados ao congestionamento que afecta a mobilidade de quem anda de autocarro, e atrairemos mais gente...para o autocarro. Só assim seremos poupados à poluição do ar que respiram todos os que andam a pé e de bicicleta, e ao esbulho de fatias imensas de espaço público para mais carros e mais lugares de estacionamento. E só assim conseguiremos dar passos seguros para reduzir a enorme ferida da sinistralidade rodoviária.
Portugal precisa, também, que a nenhum “senhor engenheiro”, em nenhuma câmara, lhe seja oferecida ajuda, pelos respectivos serviços sociais, quando decida ir de bicicleta para o trabalho, cumprindo um desafio estabelecido pelo próprio Governo. Acreditem, já aconteceu, e pelo que vejo à minha volta, não é de espantar. A mudança não é, por isso, no tipo de motor. É no modo. E antes, disso, na cultura que produz estas respostas impensáveis no país de Timmermans, mas não só.
Dir-me-ão que isso não se muda com um gesto de um Governo, e que, mesmo numa legislatura, dificilmente mudará. Eu gostaria de fazer o teste - e ao nível municipal, também -, porque, repetindo ad aeternum esta resposta estafada, nunca saberemos. Em contrapartida, continuaremos a acreditar que, para subir na vida, temos de trocar o utilitário por outro automóvel melhor, ou por um SUV da moda, quantas vezes mais poluente, e no qual até a altura de condução nos dá uma sensação de poder. Sim, porque o poder, ou o estatuto, em Portugal é estar acima dos outros, é ir mais rápido que os outros e, claro, mostrar mais poder de compra que os outros. E um carro dá-nos isso tudo.
Na Dinamarca, ou na Holanda de Timmermans, nestas questões da mobilidade, mas não só, o status vale menos. Não é por acaso que não se tratam por senhor doutor ou senhor engenheiro, e que vão de bicicleta para onde for possível, sem que com isso lhes caiam os parentes na lama. Não o fazem por ideologia, mas admito que gostava de ver um Governo de um partido socialista puxar, também desta forma, por uma sociedade menos estratificada, mais igual, em benefício de todos.
Tenho a certeza de que não faltará quem ache tudo o que acima vem escrito como pura demagogia, e indigno para o estatuto dos nossos representantes. É normal. O automóvel domina de tal forma a nossa cultura (e não apenas a nossa mobilidade), que molda o nosso conceito de dignidade, a ponto de a imaginarmos em estofos de pele. E pedirmos que alguém que deveria ser um exemplo abdique do carro, nalguns momentos que seja, deixar-nos-ia em imediata dissonância cognitiva. Nesse aspecto, António Costa é um excelente representante dos portugueses. O que é pena, pois melhor seria que não fosse.