Como activista e negra, eu falhei. Sem rodeios: Portugal é o racista-sedutor, país da abstenção (cidadãos e partidos), não se assume. Não é um país para pessoas negras e não somos bem-vindos. Precisam de nós, mas somos vistos como uma ameaça, pois em tempos fomos sua propriedade, produto para venda. Éramos vistos como “bestas selvagens”, a cura seria a religião. Folheiam-se os manuais escolares e, desde cedo, é o que se transmite. Não falamos de educação; é uma questão de identidade nacional: visionário, explorador, pioneiro, missionário. Como diz um familiar meu, branco: “Estás a ser radical. Tens de ver o lado positivo da escravatura.” Cuspiu a arrogância, privilégio e impunidade que tem agarradas à sua identidade, com a mesma força com que uma mulher branca agarra a sua mala quando se cruza com um homem negro.
Pedem-nos para ter calma. Porquê? Nós, os negros, vamos partir, outra vez, em barcos, armas e invadir Portugal? Escravizar e matar milhões de pessoas? Esperem. Isso nunca aconteceu. Lembrete: reler parágrafo anterior.
Há mais de cinco décadas que os meus pais vieram para cá e cedo comecei a combater algo que dizem não existir. É duro chegar à escola primária e proibirem-nos de entrar: “As tranças fazem piolhos.” E é assim que tudo começa: sai-se de casa uma criança, volta-se, à força, activista. Sabem, vivemos coisas muito más e, por isso, luto para que mais ninguém passe por elas. Todavia, falhei. Vocês estão a passar.
Falhei porque, há uns bons anos, um irmão meu faleceu num dos maiores hospitais de Lisboa, de forma cruel. Não sabíamos dele, até que o descobrimos. Estava ligado a uma máquina, mas decidiram desligar. “Porque, mais tarde ou mais cedo, eles acabam por morrer.” Insistimos para ver o corpo. A superfície onde estava arrumado tinha sangue: “Isso? Era do outro anterior.” Não fomos recebidos com palavras de apoio e explicações. Fomos esmurrados com frases de despeito. A minha mãe nunca recuperou desta perda e faleceu cerca de 13 meses depois. Perdera uma filha, em Angola: dois militares portugueses envolveram-se numa discussão, a minha irmã quis apaziguar, morreu alvejada pelos ditos.
Falhei porque não combato de forma enérgica a ideia de “integração”. Respeito e coexistência! Porque não critico mais vezes a construção “afro-europeus”, uma falácia. Os europeus não deixam os seus a morrer em alto mar. Os europeus não deixam os seus sem nacionalidade, deveres e direitos. Os europeus não chamam os seus de “ilegais”. Os europeus não espancam os seus em esquadras de polícia e saem impunes. Os europeus não lincham os seus, sem haver indignação geral 24horas por dia. Só se os corpos forem “afro-europeus”. Aí há adrenalina; para muitos, isto é um jogo e sai-lhes sempre a “get out of jail free card”.
Falhei quando digo que o Norte é diferente do resto do país. Estou a mentir. É igual. É verdade que são mais frontais. E não levam afrontas para casa. Não são nenhuma excepção, abrem excepções. Confirmando, assim, a regra. Falhei por desconhecer a estrutura do Instituto Politécnico de Bragança, único da área, que muito respira à custa dos cerca de 1700 alunos cabo-verdianos. São muitos negros instruídos por metros quadrados. Num país onde em cada 100 alunos negros só 20 têm hipótese de chegar à faculdade, 1700 são um barril de pólvora: a ameaça. E eu não sabia deste barril. Era uma questão de tempo.
Estou habituada a analisar a linguagem corporal das pessoas e a antever os seus comportamentos. Experiência de vida e da luta. O normal deveria ser viver em paz, sem estas inquietações. Mas, caros pais e mães dos estudantes que para cá vêm estudar, eles chegam desarmados. O sistema está viciado e são iludidos. E eu não consegui prever os 15 comportamentos. Era meu dever proteger o vosso filho e os amigos. Porque, aparentemente, não há racismo em Portugal. Só motivos fúteis. E um pai e uma mãe que viram o seu filho partir primeiro do que eles. Ninguém merece viver isto. E quem fica indiferente a este sofrimento, em detrimento da sua fragilidade identitária, portuguesa ou cabo-verdiana, é cúmplice dos 15, tal como foi dos 16. Sem qualquer poesia: sem justiça não há paz.