Viagem pelo labirinto de “verdades e mentiras” que é o passado colonial português
Um Plano do Labirinto é a quarta colaboração de João Garcia Miguel e Francisco Luís Parreira — que prometem não ficar por aqui. A peça, em cena de 9 a 19 de Janeiro, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, convida o público a reflectir sobre a veracidade das memórias da Guerra Colonial portuguesa.
Têm “uma forte capacidade de diálogo”, embora nunca estejam contentes um com o outro. É no pico dessa insatisfação mútua que acabam por descobrir “novas temáticas, novos sentidos de discussão” passíveis de serem transformados em objectos teatrais. Assim é a relação entre o encenador João Garcia Miguel e o dramaturgo Francisco Luís Parreira, que ao longo dos últimos anos uniram esforços para levar aos palcos portugueses obras como Lilith (2012), Três Parábolas de Possessão (2015) e Medeia (2019). Partilham o interesse pelas “questões míticas, pela história” e um pensamento crítico “sobre o que é a nossa realidade” — e o que nela é resultado da referida mitologia.
Não é por isso de estranhar que Um Plano do Labirinto, a peça que se estreia esta quinta-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto, sobre “as verdades e as mentiras (sobretudo as mentiras)” da Guerra Colonial portuguesa, seja descrita como um “polifónico conto mitológico”. O ponto de partida de Francisco Luís Parreira foi “A História de uma Alma”, um manuscrito egípcio que conta a história de um homem cansado, com vontade de por termo à vida, que conversa com a própria alma”. Após uma primeira abordagem e partindo da estrutura original, o dramaturgo decidiu incluir no texto trechos da sua biografia, assim como também vivências do mundo exterior que o rodeava. “Olhou para aquilo que é a sua cidade, o seu bairro, a vila onde vive e todas as histórias que ali existem sobre as ex-colónias”, relata João Garcia Miguel.
O resultado foi um “labirinto de histórias”, muitas delas formuladas “a partir do imaginário colectivo”, onde os relatos de episódios nunca experienciados da guerra proliferam. Mas como é que se explica esta necessidade de “mentir tão ostensivamente” sobre este episódio da história portuguesa? Para João Garcia Miguel, “as pessoas precisam de criar para sobreviver ao que é a sua relação com o passado e, eventualmente, se colocarem num plano mais elevado para o presente e futuro”.
A verdade é uma parte residual das narrativas apresentadas (fazendo jus ao ditado português ‘quem conta um conto acrescenta um ponto’), mas o encenador não tem medo de o assumir, por entender que “quanto mais falamos sobre as histórias, mais nos afastamos delas”. Daí que o maior desafio na construção da peça tenha sido “tirar importância aos episódios relatados e torná-los capazes de serem reinventados e teatralizados de forma divertida, quase como um jogo de crianças”. A tarefa de dar vida a estes relatos foi entregue a Sara Ribeiro, Paulo Mota e João Lagarto que ao longo da narrativa se desdobram em múltiplas personagens, diálogos distribuídos por diferentes espaços cénicos.
No palco sombrio envolto ora por sons bélicos ora por silêncios, a relação “entre as diferentes perspectivas” é providenciada pelas muitas vozes existentes: “Umas mais conservadoras, outras mais progressistas; umas de esquerda, outras de direita; umas mais religiosas, outras menos…”. No agregar destas dualidades, há lugar para uma história de amor não concretizada, para um poeta caído em desgraça e para episódios militares, entre os quais um ataque de antílopes que acaba por aniquilar uma patrulha portuguesa fortemente armada.
Um encenador irreverente
João Garcia Miguel é conhecido pela irreverência que emprega em todas as peças que encena. Garante, por isso, que qualquer espectador familiarizado com o seu estilo irá perceber “de imediato” que Um Plano do Labirinto se trata de uma criação da sua autoria — o jogo lumínico simbólico/metafórico é exemplo disso. Detentor de uma visão “muito específica e singular no universo teatral europeu e português”, como assume o próprio, Garcia Miguel diz ter uma posição “sempre um bocadinho contrária” ao que são as “tendências teatrais predominantes”. “Sinto que esta irreverência tem muito que ver com o facto de pensarmos o teatro não como algo estanque, mas como uma coisa muito interventiva socialmente, no domínio da provocação, de promover uma reflexão sobre a actualidade”.
Quem parece gostar desta irreverência é o público que segue o trabalho do encenador através da Internet. Nas plataformas digitais, algumas das suas peças contam com 130 mil ou 250 mil visualizações, números que o surpreendem não só pela dimensão, mas por se tratar de um fenómeno recente. “Para teatro, é uma coisa fora do comum. Nem eu tinha consciência desse poder, aconteceu tudo nos últimos dois, três anos”, assegura. Ainda assim, João Garcia Miguel garante que é uma preocupação sua “filmar as peças e devolvê-las à comunidade”. No futuro próximo, será motivo de registo o quinto capítulo da colaboração com Francisco Luís Parreira, prevista para o próximo ano.