“Vegansexuais”: “Beijar alguém que acabou de ingerir um pedaço de animal seria angustiante”
Não é uma nova orientação sexual, mas a “sexualidade vegan” seduz quem recusa a crueldade animal. “Sem ideologia poderemos falar de sexualidade?” Para os parceiros dos “vegansexuais”, carne, só viva.
Tivéssemos falado há dez anos e Miguel não diria procurar parceiros que, como ele, seguissem um estilo de vida vegan. “Na adolescência, com o fervor e a paixão de ‘vamos mudar o mundo’, eu era capaz de tentar ‘converter’ alguém”, ri-se o jovem de 27 anos, ao telefone com o P3. “Mas já aprendi que não mudamos ninguém forçando essa pessoa.”
Por isso, Miguel Eusébio mudou de estratégia: “Se eu viver a minha vida normalmente, a pessoa vai olhar para mim e ver que funciona.” Conheceu a namorada através da Veggly, uma aplicação de encontros pensada para juntar pessoas vegetarianas ou que seguem um estilo de vida vegan. “O nosso primeiro beijo foi num protesto pela Amazónia, em Lisboa. Foi um bocado revolucionário”, ironiza o fitoterapeuta e acupunctor de 27 anos.
Antes tinha experimentado navegar por perfis mais abrangentes noutras apps sem filtros específicos sobre preferência alimentares ou consciências éticas e ambientais. Mas mesmo no Tinder dizia ao que vinha logo nas primeiras linhas da biografia: “Vegan as fuck”, apresentava-se. “Pensei em não dizer, porque se calhar as pessoas não se iriam aproximar. Mas será que eu quereria que essas pessoas se aproximassem? Quando os princípios não se alinham…”
Alguns swipes originavam discussões engraçadas. A conversa caía frequentemente no tema das liberdades pessoais. “Eu apoio a tua crença, tu tens de apoiar a minha”, diziam-lhe. “Mas o veganismo é uma posição. Tu acreditares que os animais não sofrem, isso sim, é uma crença”, atira. Mas nem sempre o diálogo chegava tão longe. “Quando gostamos de alguém — intelectual ou fisicamente — há pequenas coisas que nos ‘desligam’, os chamados turn offs. Teres uma pessoa à tua frente que acabou de comer um cadáver ou que te disse que não quer saber do sofrimento dos animais… é estranho.”
É ele quem faz a pergunta — e a resposta não se deixa esperar. “Se me perguntares: Miguel, identificas-te como ‘vegansexual’? Sim, identifico-me. Os rótulos podem criar obstáculos, mas não deixam de ser verdade.”
A hipótese da “sexualidade vegan” foi formulada pela investigadora Annie Potts, depois de a neozelandesa analisar as respostas a um inquérito sobre “consumo ético” feito pelo Centro de Estudos Humanos e Animais da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, em 2006.
No questionário de resposta aberta, sete mulheres relataram preferir envolver-se sexualmente e em parcerias afectivas apenas com outras pessoas vegan. Há 12 anos, quando o veganismo ainda era percepcionado como um estilo de vida alternativo (e extremo), os blogues e meios de comunicação nacionais e internacionais alimentaram-se desta narrativa, descrevendo-a, erradamente, como uma “nova orientação sexual” e reforçando estereótipos infundados como a “vegan frígida” ou “o vegan pouco masculino”. “A atenção mediática foi predominantemente negativa e depreciativa em relação às pessoas vegan e vegetarianas”, escreve Annie Potts [que está em licença sabática e, por isso, não respondeu às perguntas do P3], num artigo publicado mais tarde no Sage Journals. “Uma agressividade particular foi evidente em comentários online daqueles que se posicionam como homens heterossexuais consumidores de carne.”
As razões enumeradas pelas sete inquiridas eram semelhantes às que ouvimos de Sara Gomes, 33 anos: “Beijar uma pessoa que acabou de ingerir um pedaço de animal morto seria angustiante para mim.” Continua: “Embora considere alguns omnívoros sexualmente atraentes, saber que um elemento do sexo masculino é vegan é, sem dúvida, um maior factor de interesse a ter em conta. Tanto a nível de alimentação, como de vestuário e testes em animais, o meu parceiro deve ter a empatia incutida e consciência que pode recorrer a alternativas sem contribuir para o sofrimento — e isso é apaixonante.”
Para Patrícia M. Pascoal, psicoterapeuta, professora universitária e presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, dar um nome a esta preferência “ajuda a perceber a extensão que um compromisso ideológico de vida tem, ou pode ter, na esfera da sexualidade”. “A sexualidade humana e a sua expressão são definidas pela forma como vai sendo construída e vivida e, neste sentido, o veganismo sexual é uma expressão social e interpessoal possível da sexualidade”, defende. “Sem ideologia poderemos falar de sexualidade?”
Uma app para fazer veg-match
Não há dados oficiais sobre quantas pessoas no país deixaram de consumir por completo produtos de origem animal, da carne ao mel. Em 2017, o Centro Vegetariano calculou que existiam em Portugal 120 mil vegetarianos, o quádruplo de 2007. Um universo limitado, mesmo que possam existir “vegans de todas as formas”, lembra Miguel Eusébio, que sugere encontrá-los em vigílias, acções de rua pela causa animal, protestos, ou restaurantes vegan. Ou, claro, na Internet.
“A Veggly surgiu justamente da dificuldade em encontrar alguém que compartilhe os mesmos valores que os meus”, diz ao P3 Alex Dornelas Felipelli, programador nascido no Brasil e cidadão português de 40 anos. A app lançada em 2018 já registou “40 mil veg-matches” e, através da localização de GPS do utilizador, Alex estima que estejam inscritas duas mil pessoas em Portugal.
Além das opções “vegan” ou “vegetariano”, a Veggly inclui ainda a opção “em transição”. “Para mim, faz sentido optar por me relacionar com pessoas com o mesmo estilo de vida que o meu. Mas também creio que a comunidade deve ser aberta a pessoas em transição, para evitar radicalismos, o que poderia afastar as pessoas do veganismo ao invés de atrair”, explica o criador da aplicação que junta mais utilizadores nos Estados Unidos da América e está traduzida para espanhol, dinamarquês, alemão, italiano e francês.
Outro exemplo é o Green Singles, que começou como uma newsletter em 1985 antes de se tornar num site de encontros de nicho, em 1996. “Usar uma app mainstream para encontrar alguém eco-consciente pode ser como encontrar uma agulha num palheiro; é muito difícil porque não há filtros para isso”, diz ao P3 a responsável da comunidade, Jill Crosby. “Os nossos membros são activistas pelos direitos dos animais, vegans, vegetarianos e pessoas com consciência ambiental que valorizam fortemente a protecção do nosso precioso planeta.”
Potts continuou a estudar a “sexualidade vegan”, que, descreve, pode ir desde “uma propensão para sentir atracção sexual por quem partilha princípios semelhantes no que toca à exploração dos animais não humanos” até uma “aversão sexual forte aos corpos daqueles que consomem carne e outros produtos animais”.
Mas os próprios vegan dividiram-se “em relação à existência e benefícios de uma forma de preferência sexual assente numa preferência ética/alimentar”. Se uns entendem a sexualidade ética “como uma extensão viável e natural de um estilo de vida vegan”, outros, narra a investigadora no mesmo artigo, defendem que o conceito é “demasiado radical e um obstáculo para os objectivos políticos do veganismo”.
Pedro Oliveira Monteiro, vegan há quatro anos, é um deles. “Nunca tinha pensado nisto” antes de ver uma publicação sobre o tema num grupo de Facebook para vegetarianos e vegans portugueses, com mais de 21 mil membros. “Mas tudo o que fizermos para nos afastar é contraproducente”, defende. “Para nós, porque nos afastamos das pessoas que vivem à nossa volta. Para os outros que não pensam em fazer uma transição porque vêem uma espécie de radicalismo no veganismo. Tudo o que for extremar as posições desgasta-nos e é contraproducente à causa.”
Curiosamente, esta foi também a opinião da co-fundadora da PETA, Ingrid Newkirk. “Quando os meus colegas vêm ter comigo e dizem: ‘Adivinha? O meu namorado agora é vegan’; eu digo, meio a brincar: ‘Bem, está na altura de o largar e de ir atrás de outro. Já fizeste o teu trabalho, passa à frente.’” Não é difícil visualizar a estratégia de recruta.