A Despedida: pelo doce luto sem lágrimas, mas com apetite

A Despedida veste a angústia e o silêncio, as roupas duras do luto, mas não por muito tempo. Permuta-as por tecidos quentes, disparos de luz, um brasão de reflexão e reunião. É fluente na linguagem da perda, mas repudia a falta de humor.

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Dizem os peritos que O Irlandês (Martin Scorsese) é a película com maior probabilidade de se sagrar melhor filme nos Óscares. À hipotética despedida de Scorsese seguem-se Joker (Todd Phillips) e Parasitas (Bong Joon-ho). Só em 11.º lugar surge a talvez mais modesta proposição da lista, A Despedida — que chega às salas portuguesas esta quinta-feira, 9 de Janeiro —,  mas os números mentem. E as famílias também.

Não sendo exactamente essa a premissa d' A Despedida, que lança a realizadora Lulu Wang, é uma aproximação. Qualquer descrição já mingua a sua doçura, o deleite do seu compasso (sem querer piratear o léxico do marketing para géis de banho). Esta é a beleza enquanto cinema: um trabalho que pertence à visão, ao palato — sem ser um festim sensorial — e ao coração.

A rapper e actriz Awkwafina é Billi, o norte da história: jovem chinesa e americana, vida precária em Nova Iorque. À sua evanescente herança, contrapõe os telefonemas cúmplices com a avó Nai Nai — doente terminal, reduzida por um cancro do pulmão a três meses de vida. O diagnóstico é omitido à avó por respeito ao dogma chinês de que “não é o cancro que mata” a pessoa, “é o medo”.

Ao assumir o martírio de Nai Nai, a família, que encena um casamento como desculpa para a visitar, protagoniza outro teatro dolente. Cinzentos respaldam o céu, azuis e beges matizam corredores de hotel e salões de festa, ao ritmo alienado e interrupto de Billi — cores que a incrível Awkwafina dilui na comédia auto-depreciativa e numa contenção improvavelmente empática. Do individual para o todo, A Despedida bruxuleia entre o tom cabisbaixo de um hiato emocional e a felicidade em vislumbres da identidade familiar. Frequentemente à volta da mesa.

Daí que o protagonismo de Awkwafina não seja irrefragável: divide-o com a comida, o banquete quase por ritual. Billi troca as lágrimas por um apetite fabricado, uma gula por tradição, na qual a jornalista do The Dallas Morning News Irena Fischer-Huang se reviu. A comida, escreveu, “é um substituto para as conversas que não podemos ter. É uma forma de nos compreendermos”. Intercede antes do tabu se fazer verbo; capacita-se como mediadora, como na visita à campa do avô paterno. Depois da elegia dada por Nai Nai, a família mune-se dos alimentos favoritos do ente, não para inglês ver: além de bolachas e bananas, licor e pão cozido a vapor. O baijiu é sorvido por Billi, o mantou é devorado pelo pai Haiyan. Todos se nutrem com um sorriso, e a saudade não é troçada — faz-se comunhão.

A amena cavaqueira entre as lápides desenha um contraste astuto ao início da cena: uma carpideira a bradar por um recém-falecido. Esse plano excitado já vinha rasgar o anterior, embalado na resignação fria de um quarto onde Lu, mãe de Billi, se insurge contra a performance do luto. “Não gosto de pôr toda a minha emoção à mostra, como se estivesse no jardim zoológico. Mas aqui, se não chorares ou fizeres um espectáculo, pensam que não amas a tua família.” Bom estigma para erradicar. O elenco, na generosidade das suas performances, cria um caleidoscópio com todos os extremos e meandros do luto. E acaba por sugar o fatalismo da morte: se repartirmos o seu peso por todos, só sobra a paz para quem estava sentenciado a sofrer (a ética fica nas entrelinhas).

A Despedida veste a angústia e o silêncio, as roupas duras do luto, mas não por muito tempo. Permuta-as por tecidos quentes, disparos de luz, um brasão de reflexão e reunião. É fluente na linguagem da perda, mas repudia a falta de humor. Naturalizar a morte é devolver à pessoa a sua totalidade, em vez de a afogar em lágrimas. Se isso incluir mordiscar um pãozinho ou beber um licor, tanto melhor.

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