Público, jornalistas e sentimentos contraditórios
Analisar e escrutinar os acontecimentos do quotidiano faz parte da missão daqueles que decidiram abraçar o jornalismo. O problema parece ser quando o público entra no processo.
Em pouco mais de década e meia de jornalismo – primeiro como jornalista e depois como investigador – recordo situações em que os jornalistas não lidaram bem com a crítica. E não falo de coisas “extraordinárias”, mas do simples ato de ser questionado. Para quem passa o dia a escrutinar o trabalho dos outros (instituições e pessoas com responsabilidades na sociedade), pode parecer estranho existirem dificuldades quando o processo se inverte. Foi o que voltei a constatar, numa situação vivida recentemente.
Em comentário a uma partilha no Facebook, feita por um jornal regional que ali antecipava a primeira página do dia seguinte, questionei sobre a ausência de um assunto que considerava relevante. Embora este resultasse de um acontecimento que presumia ser posterior ao fecho de edição, decidi interpelar o meio. Tinha também presente que noutras ocasiões, nomeadamente em momentos eleitorais, a edição do dia seguinte fechava mais tarde. A intenção era obter uma resposta e pela mesma via. Com isto ficava esclarecido e eventualmente também ficariam outros leitores.
A resposta, que acabaria por surgir por interpelação pessoal, revelou incómodo. Mesmo depois de explicar que entendia ser importante que os medias viessem a público esclarecer, responder, enfim, interagir, não apenas publicar notícias. Quanto à interrogação deixada no espaço daquele meio e naquela rede social, ficou sem resposta.
O caso relatado serve para ilustrar a dificuldade que não raras as vezes os media e os seus profissionais revelam na relação com o público. Esta poderá ser a consequência do emagrecimento das redações ou da escassez de recursos. Que outras justificações podemos encontrar? E como será que os jornalistas encaram os seus leitores, ouvintes ou telespectadores?
Esta problemática remete para a atualidade de uma afirmação de Joshua Benton, diretor do Nieman Journalism Lab, feita há mais de dez anos: “Os jornalistas terão de perder a sua arrogância e agir como seres humanos. A transição vai ser muito difícil para a maioria. (…) A Internet treinou as pessoas para que elas recebessem as informações de uma forma social. Os repórteres têm de parar de encarar o seu público como um estorvo. Os jornalistas encaram os e-mails de um leitor como algo chato, principalmente quando endereçados ao editor. É hora de a voz institucional desaparecer. Os jornalistas online têm de encarar o leitor em primeira pessoa e dizer: ‘isto nós sabemos e isto nós não sabemos'” Na mesma linha escrevera – no livro “Nós, os media”, publicado em Portugal em 2005 pela Editorial Presença – o jornalista norte-americano Dan Gillmor, que reconhecia que os seus leitores sabiam mais do que ele.
Um indicador que reforça a questão da participação do público e a relação deste com os jornalistas e vice-versa, foi encontrado pelo Re/media.Lab. A partir de um inquérito ao qual responderam 91 jornalistas dos media da região centro, verificou-se a existência de “sentimentos contraditórios” por parte dos jornalistas. “O que se valoriza é o cidadão/utilizador como mercadoria, na medida em que a participação aparece associada à fidelização, às vantagens do modelo de negócio baseadas na proximidade e não a qualquer ganho epistémico (ao nível do conhecimento) ou cívico”, concluiu o estudo. Do mesmo também se retiram outros indicadores, como os reduzidos salário, valorização e progressão na carreira. Num quadro como este e num subsector dos media em que as redações têm menos recursos, podemos encontrar possíveis justificações para que a disponibilidade para com o público não seja a mais desejada.
Numa altura em que tanto se fala no financiamento dos media, talvez não fosse má ideia reposicionar o debate. Começar por repensar a missão dos media, do jornalismo e dos jornalistas. E também qual o papel dos provedores, dos public editors ou dos conselhos de leitores. Sobretudo num contexto de desinformação, em que o público parece precisar cada vez menos dos media tradicionais e dos jornalistas. Se estes decidirem “abandonar” o seu papel de mediadores, de guardiões da verdade e sobretudo de facilitadores e fortalecedores do diálogo com o público, que cenário poderemos esperar? O que queremos? Para quem? Como? E com o quê?
PS: Já depois de escrever estas linhas começaram a surgir as previsões para o jornalismo de 2020. Uma iniciativa do Nieman Lab, que escolheu algumas das pessoas “mais inteligentes em jornalismo e media digitais”. Vale a leitura, pelo estímulo à reflexão.