Andrea Mantegna a olhar para Júlio César num desenho raro que pode chegar aos 11 milhões
Trabalho do pintor renascentista vai ser leiloado em Nova Iorque a 29 de Janeiro. É o único desenho preparatório de Triunfos de César, uma das obras mais celebradas de Mantegna.
Andrea Mantegna não goza da popularidade de alguns dos seus contemporâneos — não é fácil competir numa galáxia, a do Renascimento italiano, em que gravitam artistas como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli e Rafael — mas isso está longe de significar que a sua obra merece menos atenção.
Extremamente influente entre os seus pares (Giovanni Bellini, seu cunhado, e Albrecht Dürer, por exemplo, são provas disso), pintor meticuloso e sofisticado, Andrea Mantegna (Pádua, 1430/31 — Mântua, 1506) continua a intrigar e é por isso que o leilão da Sotheby’s de 29 de Janeiro, em Nova Iorque, está a criar grande expectativa.
É raro museus e coleccionadores privados poderem licitar uma obra deste artista do começo da Renascença — estão quase todas em colecções públicas e privadas que não estão dispostas a abdicar delas —, mas ainda mais raro por se tratar de um desenho, recentemente redescoberto e mostrado numa exposição de referência na National Gallery de Londres e nos Museus Estatais de Berlim (Mantegna and Bellini). Não é, por isso, de estranhar que a leiloeira estime que venha a chegar aos 11 milhões de euros, uma soma muitíssimo considerável para um desenho (pode, naturalmente, ultrapassar este valor, não tendo a Sotheby’s divulgado a base de licitação).
“A redescoberta deste desenho, mais de 500 anos depois de ter sido feito, é um momento de considerável importância para o estudo deste mestre complexo, intrigante e altamente influente da Renascença italiana”, disse ao jornal britânico Observer a directora do departamento de desenho dos mestres da pintura antiga da Sotheby’s, Cristiana Romalli.
Triunfo de Alexandria, assim se chama a estrela do leilão do final de Janeiro, é, acreditam os especialistas, o único desenho preparatório conhecido feito para a série Triunfos de César (1485-1505), um conjunto de nove pinturas monumentais em que Mantegna evoca as vitórias de Júlio César nas Guerras da Gália (58 a 56 a.C.), representando um grande desfile militar nas ruas de Roma.
Feita para o paço ducal de Mântua, casa de Francisco II Gonzaga (1466-1519), para quem trabalha durante uma parte decisiva da sua carreira, esta série — dez pinturas, embora uma delas, entretanto desaparecida (conhece-se através de gravuras), não seja da autoria de Mantegna, que morreu pouco depois de concluir a nona — é uma das mais importantes obras do Renascimento, defende Romalli num vídeo breve em que explica por que razões é o desenho que em breve vai à praça tão significativo.
Mudar de ideias
“Os Triunfos é o epítome do gosto do começo da Renascença” e uma das obras em destaque no percurso de um homem que é, talvez, um dos primeiros a evoluir de artista de oficina a intelectual, acrescenta a curadora da Sotheby’s, explicando em seguida que este desenho permite aos especialistas aproximarem-se mais dos métodos de trabalho de Mantegna, que é um pintor “absolutamente perfeccionista”, que “está sempre a repensar, como qualquer grande artista”.
Através dele se vê, por exemplo, como mudou de ideias entre o papel e a pintura no que toca às proporções da cena e mesmo no que diz respeito ao seu foco temático. O desenho, exemplifica a especialista da leiloeira, vai buscar a sua inspiração ao historiador e filósofo grego Plutarco, representando o momento em que Júlio César regressa ao Egipto para mediar a disputa pelo trono protagonizada por Cleópatra e um dos seus irmãos, ao passo que a pintura é devedora dos feitos deste político e militar na Gália, sendo o farol em fundo muito maior do que o do papel e desprovido de qualquer referência à cidade costeira de Alexandria (Egipto).
Cristiana Romalli, que graças à análise feita a partir de fotografia de infravermelhos ajudou a fixar a autoria deste estudo preparatório (vendido como obra autógrafa em 1885, viria a mudar de mãos como trabalho “de atelier” em 1942) antes das exposições de Londres e Berlim em 2018 e 2019, lembra que se conhecem apenas 20 desenhos de Mantegna e que Triunfo de Alexandria é um de dois ainda em mãos privadas. Pertenceu ao professor e pintor de Dresden August Grahl (1791-1868) e a outros coleccionadores alemães.
Tendo acedido à imagem que hoje o desenho visto a olho nu esconde, os especialistas puderam chegar à conclusão de que Mantegna alterou de forma significativa a principal figura do lado esquerdo da composição e que, junto à de Esculápio, deus da medicina nas mitologias grega e romana, chegou a representar Hélio, divindade ligada ao sol. Estas alterações radicais do desenho, associadas ao pormenor e ao rigor da sua execução, fazem com que não restem dúvidas, assegura a Sotheby’s, de que se trata de um original de Mantegna — um desenho final feito para ajudar a pensar a segunda pintura de Triunfos de César, mas também para ser mostrado.
Esta série feita a pedido do duque de Mântua, também ele um militar de valor reconhecido, está hoje no Palácio de Hampton Court, uma das casas da família real britânica, e tem por “vizinhos” Ticianos e Tintorettos. Foi comprada por Carlos I (1600-1649), um dos mais extraordinários coleccionadores do seu tempo, no final dos anos 1620, quando os bens dos Gonzaga foram vendidos, e levada para Inglaterra (o monarca pouco dela disfrutou, já que, tendo resolvido voltar as costas ao Parlamento, acabaria decapitado menos de 20 anos depois).
Passaram mais de cinco séculos desde que foi executada, mas a sua capacidade de fascinar mantém-se. Em parte, talvez, porque aquilo que o artista quer que vejamos não está lá, diz o crítico de arte Jonathan Jones nas páginas do Guardian. “O poder dos Triunfos de Mantegna está no que o pintor não mostra”, escreve num artigo do diário em que defende que o verdadeiro protagonista da obra está invisível — a guerra: “Esculturas saqueadas, vasos, tesouros, escravos, tudo obtido através da chacina. Mantegna não nos deixa esquecer a realidade por trás da vitória. E até César parece saber disso.”