O sinal “escondido” no pescoço de David de Miguel Ângelo

David tem a veia jugular externa distendida. Agora, quando olhamos para a escultura, esta pode parecer uma característica óbvia, mas, segundo um médico norte-americano, nunca tinha sido documentada até aí na literatura médica.

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David exposto na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença Alessandro Bianchi/REUTERS

Que surpresas ainda nos reserva a escultura David, de Miguel Ângelo? Numa visita a Florença, o médico norte-americano Daniel Gelfman observou que o pescoço tinha a veia jugular externa saliente. De acordo com o médico, num artigo publicado na revista JAMA Cardiology, esta característica anatómica não é visível na maioria das esculturas e só foi documentada na literatura médica mais de um século depois de ter sido reproduzida por Miguel Ângelo (1475-1564). Daniel Gelfman assinala ainda que, segundo aquilo que apurou, esta é a primeira referência a esta veia jugular distendida da escultura em artigos científicos.

Não há muito tempo, Daniel Gelfman visitou a Galeria da Academia de Belas-Artes de Florença e pôde contemplar David, escultura de mármore esculpida entre 1501 e 1504. Durante essa apreciação ao herói bíblico, notou que a veia jugular externa – situada na parte lateral direita do pescoço e mesmo por cima da clavícula – estava distendida.

“A minha reacção inicial foi de fascínio. David é uma peça inspiradora e houve uma atenção incrível ao detalhe e à precisão da anatomia física”, conta o médico no artigo intitulado “O Sinal de David. “Senti um friozinho nas costas assim que percebi aquilo que estava a ver.” Assim que se apercebeu desta característica esculpida no pescoço, tirou várias fotografias à escultura de mármore para depois a estudar.

Já em casa, o médico procurou uma referência à veia jugular externa de David em manuais e na literatura médica, assim como noutras obras de Miguel Ângelo. Também falou sobre este assunto com alguns colegas. “Na minha revisão à obra de Miguel Ângelo, não encontrei qualquer menção escrita sobre a representação desta veia jugular distendida”, resume Daniel Gelfman, que foi médico durante quatro décadas e agora é professor na Universidade Mariana, em Indianápolis, EUA.

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Pormenor da escultura de David que permite ver a veia jugular externa distendida Daniel M. Gelfman

Mas por que é que Miguel Ângelo terá esculpido aquela característica? O médico começa por indicar que o escultor tinha conhecimentos anatómicos, tal como outros artistas do Renascimento. Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo, foi o primeiro a descrever o coração como um músculo e um órgão com quatro cavidades ou a explicar com precisão como o sangue circulava por essas cavidades.

Quanto ao trabalho de Miguel Ângelo, o médico considera que a veia jugular externa no David está “anatomicamente correcta”. Como tal, tem um certo significado. A veia jugular externa distendida pode ser observada em jovens saudáveis que estejam ansiosos e empolgados por enfrentar um adversário. Neste caso, David estaria assim porque ia enfrentar Golias. “Penso que Miguel Ângelo deveria ter visto a distensão da veia jugular temporariamente em indivíduos saudáveis que estavam empolgados”, descreve. A distensão desta veia também pode ser observada em indivíduos doentes que tenham a pressão intracardíaca elevada e, provavelmente, uma disfunção cardíaca. Mas este não seria o caso de David.

A veia de Moisés

E há outros exemplos na obra de Miguel Ângelo. O médico descobriu que a escultura de Moisés no túmulo do Papa Júlio II também tem a veia jugular externa saliente. “A maioria [das pessoas] concordará que o Moisés sentado está num estado agitado”, assinala. Já na Pietá, também de Miguel Ângelo, Cristo não tem esta característica, o que está anatomicamente correcto porque Cristo não estava ansioso ou entusiasmado como David nem agitado como Moisés.

Daniel Gelfman também destaca que Miguel Ângelo foi um pioneiro e se adiantou um século em relação à medicina: “Na altura em que o David foi criado, em 1504, [o médico inglês] William Harvey ainda não tinha descrito a verdadeira mecânica do sistema circulatório. Tal não ocorreu até 1628.”

O médico diz ainda que este artigo é apenas uma primeira abordagem “a este claro sinal escondido durante mais de 500 anos” e espera que haja mais investigações sobre esta característica. E conclui de forma mais poética e com uma mensagem para os médicos (e não só): “Poderá ser útil lembrarmo-nos do sinal de David em pacientes cuja tensão venosa central esteja a ser avaliada através da observação das veias jugulares, incluindo aqueles pacientes que talvez estejam ansiosos e se estejam a preparar para enfrentar os seus próprios Golias.”

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