A Estrela do Bairro

A minha tentativa de criar empatia estava, isso sim, a provocar aquele amargo vazio que, mais cedo ou mais tarde, sempre se instala quando se forçam relacionamentos sem paixão.

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Os estabelecimentos comerciais abertos durante o dia na altura eram 1/20 dos que hoje existem Zach Rowlandson/Unsplash

Há 20 anos que trabalho no Bairro Alto. Nos primeiros dias que para lá fui trabalhar, tive a sensação que o Bairro Alto era um dominó de prédios em ruínas à mercê de um terramoto que tudo reduziria a pó e a cinzas e de onde seria difícil escapar com vida.

Para quem conhece o Bairro Alto dos dias de hoje, repleto de prédios recauchutados, isto pode parecer exagero, mas foi sinceramente o que senti naqueles primeiros dias ao caminhar num labirinto de edifícios velhos enfeitados na base por dúzias de carros estacionados em cima do passeio, tapando portas e janelas, alimentando assim o meu receio de que seria difícil fugir dali em caso de incêndio ou terramoto.

Não me julguem medroso, a cidade era coisa nova e demasiado caótica para mim, enquanto as falhas sísmicas nos arredores de Lisboa era ciência conhecida desde há muito dos livros da preparatória.

Os estabelecimentos comerciais abertos durante o dia na altura eram 1/20 dos que hoje existem, e resumiam-se a tascas e a (bons) restaurantes. Turistas eram coisa rara. À noite e de madrugada, sobretudo entre quinta e sábado, a história era outra, e o Bairro – nunca houve necessidade de acrescentar “Alto” para identificar o local –, epicentro da noite lisboeta, era invadido por fauna de todas as gerações à procura de boa comida, fados, copos, ganzas e engates. Não se melindrem pelo “tríptico” pecaminoso da frase anterior os que frequentavam o Bairro nesta altura, pois toda a gente sabe que era assim. O barulho era muito, assim como as beatas, garrafas e copos nos parapeitos, portas e escadas. Já o descanso para quem aqui dormia, uma maioria de pessoas com idade avançada, era muito pouco.

“Ó vizinho, esta gente não tem respeito por ninguém”, era refrão comum nas lamúrias dos moradores, enquanto recolhiam garrafas das janelas e atiravam baldes de água aos degraus para lavar o mijo dos ébrios (ou dos abstémios aflitos). “Ó vizinho, no meu tempo não era assim, a gente divertia-se, mas não prejudicava ninguém”. “Acredito vizinha, acredito”, respondia, encolhendo os ombros em solidariedade com o incómodo desassossego (palavra linda quando aplicada noutros contextos) noturno.

A noite boémia foi coisa que nunca me entusiasmou, confesso. Já o descanso, sendo eu um madrugador inveterado, é algo que sempre prezei. De início, o trato de “vizinho” fazia sentir-me integrado numa comunidade centenária e inchava-me de orgulho — venho de um bairro dos subúrbios com pouco mais de quarenta anos, cheio de gente boa, mas sem antiguidade que lhe confira identidade —, pelo que a cada “ó vizinho” logo dava de troco, de peito feito e boca bem cheia, outro “ó vizinho” bem sonoro no início da resposta. Entusiasmado pelo rápido acolhimento, desatei a cumprimentar todos os habitantes do Bairro Alto, ou pelo menos aqueles que de forma empírica, por cruzamentos frequentes, entendi serem residentes do Bairro, com animado “bom dia”, seguindo à risca os ensinamentos de infância da minha querida mãezinha: “quando se chega a um sítio onde estão pessoas, sejam conhecidas ou não, diz-se ‘bom dia’, ‘boa tarde’ ou ‘boa noite’, consoante a altura do dia. Isto não é negociável”. E não, senhora minha mãe, não é. A não ser que se faça sem critério algum…

Ora, a lição do desvario chegou inclemente através de desfavorável estatística: “vizinhos” houve que se cruzaram comigo mais de um cento de vezes e apenas em metade das ocasiões terão respondido com ‘bom dia’ ou ‘boa tarde’ ao meu cumprimento — na outra fatia das vezes, verificou-se, meio por meio, ausência de resposta ou um eloquente “uhrrr” —, pelo que aos poucos aprendi que a minha tentativa de criar empatia estava, isso sim, a provocar aquele amargo vazio que, mais cedo ou mais tarde, sempre se instala quando se forçam relacionamentos sem paixão.

Naquela altura, entrava no Bairro quase sempre pela Travessa da Água da Flor, vindo do Jardim de São Pedro de Alcântara, onde quase todos os dias passava alguns minutos a apreciar o Castelo de São Jorge lá no alto, pendendo depois o olhar para o extremo direito do quadro para dizer olá ao Tejo e ensaiar entre dentes banda sonora a condizer: “canoa de vela erguida, que vens do cais da ribeira…”. Depois do momento musical, descia a Rua do Diário de Notícias a caminho da Travessa da Queimada, o meu destino. Vinte metros antes da esquina, vivia uma senhora, seguramente com idade para ser minha bisavó, que era causadora da porção maior da minha ansiedade diária. A dita passava a vida de atalaia à janela e escrutinava-me com olhar de águia desde o momento que me via a dobrar a esquina da Travessa da Água da Flor, mantendo depois indefinidamente a mira apontada para mim lá do seu poleiro na janela do rés-do-chão elevado, onde se mantinha noite e dia de braços cruzados no parapeito e xaile pelos ombros, fizesse frio ou calor, sempre de semblante fechado, qual ressabiado porteiro de discoteca.

Repetiu-se o teatro dias a fio, intrigando-me cada vez mais a atitude e a reiterada ausência de resposta ao meu cumprimento. Ora isso acabou por desenvolver em mim a masoquista dependência de passar diariamente em frente à sua janela. Um dia, obtive resposta: como troca pelo meu bom dia recebi uma careta e o estrondo das portadas fechadas à bruta. “Bom, pelo menos reagiu”, pensei. No dia seguinte, repeti a graça na esperança de que a minha teimosia transformasse a dela e daí sobreviesse outra rotina mais agradável para ambos. Nada feito, perante a minha cordialidade, ela repetiu careta e estrondo. Nesse e nos dias seguintes.

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Num dia de muita chuva, decidi arriscar estacionar o meu carrinho novinho e folha dentro do Bairro — o que havia evitado fazer por temer que pudesse ser riscado ou amolgado nas ruas estreitas —, para ficar mais próximo do trabalho e evitar uma valente molha. A sorte compensou a ousadia com lugar vago na Rua do Diário de Notícias, mesmo por baixo da janela da dita “porteira”. Estacionei o carro rentinho à parede, menos de um palmo à frente da porta, pelo que confiei que era reduzida a probabilidade de ganhar uma amolgadela por perturbar a circulação rodoviária ou o acesso ao prédio. Encaminhei-me para a Travessa da Queimada, mas antes de dobrar a esquina, procurei a minha “amiga” na janela. Nada, portadas fechadas, fiz-me ao caminho. Contudo, imagem retardada assomou-se-me ao pensamento, travando-me o passo: o cortinado de renda oscilara ligeiramente e quase posso jurar que havia um olho a espiar-me pelo buraco de uma roseta. Escapou-se-me um sorriso e prossegui.

Horas depois, findo o labor, encaminhei-me para o carro. Ao dobrar a esquina, vi o Paulinho, um perdido da vida conhecido por todos no Bairro, a rir às gargalhadas. Aproximei-me:

– Então, que se passa Paulinho?

– Ó bacano – respondeu-me a custo –, olha para ali, a velha despejou a água do alguidar da loiça por cima daquele carro!

Nem queria acreditar. O meu carrinho estava envolto numa película de gordura, com restos de comida a escorrerem pelos vidros e carroçaria. Afastei alguns fios de esparguete do puxador da porta e meti-me no carro, acelerando propositadamente em protesto.

No dia seguinte, repeti o trajeto habitual, novamente a pé. Para minha surpresa, lá estava ela no poleiro, mas desta vez mantinha o olhar fixado na calçada por baixo da janela, onde ainda eram visíveis alguns restos de comida.

– Bonito serviço –, disse-lhe. Não só não respondeu, como nem olhou para mim.

É sabido que quando uma relação termina mal, há um risco enorme de sermos atormentados pelo rancor. Em mim, o rancor manifestou-se sob a forma de mudança de rota. Ao invés de entrar no Bairro pela Rua do Diário de Notícias, passei a descer a Rua de São Pedro de Alcântara até ao Largo Trindade Coelho (também conhecido por Largo da Misericórdia, onde está a Estátua do Cauteleiro) e a entrar no Bairro diretamente no início da Travessa da Queimada, evitando assim a janela da “porteira”.

Um dia, ao sair do trabalho, vejo a senhora à porta acompanhada por uma rapariga na casa dos vinte.

– Olá –, disse-me timidamente a jovem –, a minha avó queria pedir-lhe desculpa por aquilo do outro dia. É que estão sempre a estacionar em frente à porta e ela tem dificuldade para sair. Ela não sabia que o carro era do senhor. Já são quase 90 anos sabe, já vê muito mal e pouco fala. Hoje fez um bolo e pediu-me para vir aqui trazer-lhe.

Fiquei sem chão.

– Aquilo não teve importância – menti.

A senhora estendeu-me o prato com o bolo.

– Ó vizinha, obrigado, não era preciso. Como se chama?

A neta interveio:

– A minha avó chama-se Estrela. Depois deixe-lhe o prato quando passar por ali, mas só para a semana; vamos levá-la a passar o Natal connosco.

– Combinado. Obrigado dona Estrela, tenha um feliz Natal.

Nunca esqueci aquele dia 23 de dezembro.

Em todos os momentos da vida quotidiana, a nossa interpretação do que vivemos é só isso, a nossa interpretação. No aparente preto e branco da realidade há uma imensidão de outras cores, e em cada uma dessas cores há infinidade de tons, e em cada um desses tons…

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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