O pleno emprego científico dos 8%
Aparentemente, os únicos doutorados com “pleno emprego” em Portugal são os spin doctors, aqueles que trabalharam os números para defender que, na verdade, a taxa de aprovação não foi de 8%. A manipulação de dados na ciência vai contra um dos pilares mais fulcrais da sua ética
Seja pela mudança de mentalidade associada a uma transição geracional, seja a noção angustiante que terminou um ciclo eleitoral e que as coisas só vão piorar num futuro próximo, o certo é que é simbólica a reacção dos investigadores nacionais à taxa de aprovação do concurso actual (de 2018) de emprego científico, tradicionalmente pouco dados a manifestações ou sindicalismos.
Os cientistas nacionais optaram por um protesto silencioso simbólico em que posam para uma fotografia à porta das instituições em que trabalham, 92% vestidos de escuro e 8%, a percentagem dos aprovados para financiamento, com uma bata branca vestida. Depois de serem anunciados os resultados, a maior parte dos partidos remeteu-se ao silêncio, mas a visibilidade que este Movimento 8% gerou resultou num convite para os doutorados serem ouvidos no Parlamento, com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a entrarem em modo de controlo de danos.
Aparentemente, os únicos doutorados com “pleno emprego” em Portugal são os spin doctors, aqueles que trabalharam os números para defender que, na verdade, a taxa de aprovação não foi de 8%, como constataria o prezado leitor que estudou matemática na escola primária: sendo 3631 candidatos, se foram aprovados 300 para financiamento, corresponde a uma taxa de sucesso de 8,25%, não é assim?
Não, quando a parte de “Ciência e Tecnologia” perde primazia e escolhemos quais as amostras do universo que queremos ter em conta. O que a FCT defende é que, na verdade, 48% das candidaturas não atingiram um limiar de mérito de 8/10 valores e não foram consideradas, por isso não devem ser consideradas quando quantificando a taxa de aprovação.
Isto é problemático por dois motivos: por um lado, é uma desculpa: “não deixámos 3000 cientistas sem emprego, foram só 2000, portanto não sei por que é que estão incomodados”; por outro, é desonesto, porque numa avaliação qualitativa (de um currículo e um projecto de investigação) qualquer nota ou valor atribuído é regido por uma escala arbitrária.
Todos acharíamos ridículo em qualquer outra situação se um currículo enviado para uma posição numa empresa fosse avaliado de 0-10, sem qualquer critério de avaliação ou de métrica, e excluído, não por não ser o melhor, mas por não atingir um valor X ou Y. Aparentemente, para uma posição na ciência, que associamos a exactidão, rigor e precisão, esta métrica “faz-de-conta” é aceitável. A manipulação de dados na ciência vai contra um dos pilares mais fulcrais da sua ética, dando direito a retracção de artigos, perda de bolsas de mérito e ostracização por parte da comunidade, mas as entidades nacionais responsáveis aparentam não partilhar essa visão.
Por fim, uma apreciação final quanto à taxa de aprovação: se, de facto, este concurso fosse regido por uma questão de mérito, em que as candidaturas eram avaliadas e seriadas, sendo aprovadas, ou não, consoante atingissem o tal valor de 8/10, teríamos tido uma taxa de aprovação de quase 52%, um valor que poderia ser efectivamente considerado generoso, em linha com o título de “estímulo de emprego científico”, em vez de “concurso de mérito” ou “Excelência no emprego científico”.
Assim sendo, a gota de água que é o valor de 8,25% não só não pode ser considerado um estímulo ao emprego científico, como na verdade nem sequer é comparável com as taxas de sucesso das bolsas de investigação europeias de excelência, bem mais competitivas e atractivas financeiramente, como o Conselho Europeu de Investigação (12%) ou as Acções Marie Skłodowska-Curie ou a Organização Europeia de Biologia Molecular (ambas com 15%).