O livro que é nada
Com estes Cadernos magistrais que emergem como um livro-vendaval, Rui Manuel Amaral inscreve-se numa linhagem literária grandiosa, na modernidade que vai de um Flaubert a um Robert Walser.
O título deste livro evoca respeitáveis parentescos de género: por exemplo, com os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke. A ideia de “cadernos” implica a heterogeneidade, a ausência de hierarquia, a inorganicidade, as auto-reflexões ensaísticas e meta-narrativas: assim é feito este livro de ficção narrativa de Rui Manuel Amaral, um livro-mundo aberto a toda a matéria. Bernfried Järvi soa a nome de personagem nórdica (talvez finlandês), outras personagens têm nomes acentuadamente germânicos. Trata-se de uma impressionante série de “désoeuvrés”, de gente desocupada e entregue a uma vida completamente estranha a toda a economia da utilidade. Às vezes fazem lembrar as personagens de Robert Walser e, até, algumas das personagens de Kafka, nos seus contos e fábulas para metafísicos.Apesar de ser um nome que nos soa como extravagante e nos colocar na expectativa de irmos encontrar uma figura singular, uma epígrafe inicial quebra logo as nossas expectativas: “Chamo-me Benfried Järvi como toda a gente” (assinado: Erik Satie, 1992). A atribuição da frase a Erik Satie faz parte do jogo que consiste em introduzir o leitor no seio da mais estranha banalidade, que se torna quase irreconhecível por efeito de aproximações microscópicas. São vidas banais e quotidianas que nem têm história e que só podem ser fixadas em cadernos de notas. Nada de romanesco, nada de peripécias: estas personagens que se chamam Bernfried Järvi, Milo, Matthäus Geschke ou Pagreus, como toda a gente, são os “heróis” do quotidiano, de uma épica anónima, são os Franz Biberkopf (o protagonista de Berlim Alerxanderplatz) do nosso tempo. E essa matéria do quotidiano de que são feitos estes Cadernos é, como sabemos, o mais difícil de apreender, aquilo que implica um trabalho literário mais exigente.
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