A indústria “reforça a nossa relação com os animais” — mas ainda “há muito trabalho a fazer”

Mais de metade dos lares portugueses têm, pelo menos, um animal de companhia e as relações afectivas entre humanos e não humanos nunca foram tão discutidas — até ao nível político. Partidos coincidem na defesa da esterilização de animais errantes e institucionalizados e pode estar para breve a criação de um provedor nacional dedicado.

Foto
Jorge Zapata/Unsplash

Em Portugal existem cerca de 5,8 milhões de animais — 2,1 milhões são cães, 1,2 são gatos — e mais de metade das habitações, 54%, têm, pelo menos, um animal de companhia, segundo dados da Track 2 Pets, da consultora GFK estima que os portugueses gastem 500 milhões de euros por ano só em alimentação para cães e gatos, de acordo com a Associação Portuguesa de Comerciantes de Produtos para Animais de Companhia. Nos últimos anos, numa tendência praticamente global, os direitos dos animais conquistaram espaço no discurso político e tornaram-se uma das questões centrais do debate público. Entre as razões para tal está uma indústria que transforma os animais em “bens de consumo”, explica ao P3 Verónica Policarpo, socióloga, especialista nas relações entre animais humanos e não humanos. E a indústria fá-lo de duas formas: como “bem de consumo” directo (a venda de determinadas raças, por exemplo) ou indirecto (como os alimentos). 

“Existe uma indústria orientada para reforçar a nossa relação com os animais”, considera. Outro motivo “determinante” está relacionado com a “crescente sentimentalização da vida pessoal e familiar” que passou a caracterizar a sociedade actual. A “tendência” para “valorizar os laços de afecto e o valor das relações” beneficiou os animais, que “saíram reforçados por essa via”.

A relação afectiva entre animais e pessoas reflecte-se nas centenas de associações distribuídas por todo o país e que se dedicam à protecção dos animais. Uma grande parte destas são constituídas apenas por voluntários, como é o caso da Chão dos Bichos, no Montijo, que tem a seu cargo 500 animais, todos recolhidos da rua. A presidente, Ana Sousa, ocupa as funções a tempo inteiro, depois de ter deixado para trás a produtora de televisão onde trabalhava como cabeleireira. Começou por acolher animais em casa, deparou-se com demasiados gastos veterinários e em alimentação e um processo em tribunal com um vizinho. Após ter conseguido uma nova localização para a associação, em Agosto de 2015, uma das paredes do abrigo foi regada com gasolina e a sede da Chão dos Bichos incendiada. Nove cães morreram. “A polícia judiciária disse-nos que tinha sido fogo posto e provavelmente, tudo indica, foi feito mesmo para nos atingir”, explica.

Mesmo com o trabalho de associações como a Chão dos Bichos, existem “cada vez mais animais de rua”, diz ao P3 o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, Jorge Cid, que pede a criação de um grupo de trabalho para se estudar “a sério” este “problema gravíssimo”. “Com os “canis sobrelotados”, o bastonário defende a redução do IVA nos serviços veterinários (taxado a 23%) para que se promovam os “bons cuidados” animais. Até porque não faltam médicos veterinários: em Portugal existem cerca de 6500.

Porque é que adoptamos uns animais e comemos outros?

Também a lei portuguesa tem registado “grandes avanços” nos últimos anos, no que à protecção dos animais de companhia diz respeito, defende Maria Quaresma Reis, provedora dos animais de Lisboa. Em causa estão as leis 69/2014, que criminaliza os maus tratos a animais de companhia, e a 8/2017, que reconhece os animais enquanto seres sensíveis em vez de coisas. Mas, alerta a provedora, ainda “há muito trabalho a fazer”. Uma das “fraquezas” da lei de 2014 é que “traz muitas dificuldades aos próprios decisores”, até porque não está prevista a morte do animal. “Se eu espancar um animal até à morte, incorro em crime”, explica, mas se for “dado um tiro num cão e se provar que não houve sofrimento”, há “margem” para se “dizer que não existiram maus tratos”. No caso dessa lei, apenas existe a aplicação do crime de dano, o que, na opinião da provedora, é “totalmente incompatível” com a outra lei, que já não vê os animais como coisas. “Como é que posso danificar algo que já não é uma coisa? Tudo isso é um bocadinho inconsistente”, comenta.

Mas a criminalização dos maus tratos, frisa Marisa Quaresma Reis, apenas abrange animais de companhia. “Parece que os outros não têm significado”, aponta, e exige a revisão das punições a animais da pecuária, do espectáculo ou das actividades de caça.

Esta dualidade entre animais de companhia e os outros é uma das “ideias fundamentais” para percebermos a relação entre o ser humano e os animais, considera Verónica Policarpo. Afinal, porque é que adoptamos uns animais e comemos outros? “A nossa relação de ambivalência com os animais está muito relacionada com a ideologia antropocêntrica, ou seja, um sistema de valores onde o ser humano foi visto como excepcional” e os outros animais “só servem para cumprir os nossos desígnios e necessidades”. O processo de socialização também cria um distanciamento face a um tipo de animais — um “afastamento até físico” —, como acontece com a falta de conhecimento sobre o “processo de produção” de carne para consumo humano.

O que dizem os partidos?

Para o Partido Socialista, o mais urgente é a criação de um provedor do animal à escala nacional, que poderia funcionar como “elemento simbólico importante”, além de “operacional muito relevante”. A medida, refere o deputado socialista Pedro Delgado Alves, é para ser implementada ainda nesta legislatura. Sobre a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, o PS admite que existem “necessidades de melhoria” da lei. 

Foto
Rafael Marchante

Já o Partido Comunista Português (PCP), através da deputada Paula Santos, aponta duas medidas como “fundamentais” para travar a proliferação de animais errantes: o aumento do investimento público para construção e ampliação de centros de recolha oficiais (COF) e o reforço dos programas de esterilização de animais de companhia. O PCP apresentou ainda, na actual legislatura, uma proposta para a criação de centros de acolhimento de animais exóticos e selvagens e um projecto de resolução para a redução da experimentação científica em animais.

São três as bandeiras do PAN para esta legislatura: a abolição da tauromaquia, o fim do “transporte de animais vivos” e a extensão a todos os animais da criminalização de maus tratos. Mas Cristina Rodrigues classifica o descontrolo da população animal como o “problema principal”. Para resolvê-lo quer “melhoria da legislação”, aposta “forte” na esterilização, “promoção da adopção” e “identificação electrónica dos animais”. Apesar de a lei prever o fim do abate de animais em canis, a deputada diz que existe uma “grande falta de vontade política em concretizar uma política de não-abate”, denunciando que apenas metade dos municípios tem centros de recolha oficiais.

Retirar as touradas do horário nobre das emissões televisivas é um dos objectivos do Bloco de Esquerda (BE). Segundo Maria Manuel Rola, mesmo com a obrigatoriedade de esterilização de animais errantes nos COF, o BE vai “insistir” para que a verba para esse fim conste do Orçamento do Estado. “E temos de começar a olhar para espécies ameaçadas, mas que não estão protegidas neste momento”, como a rola, as renas (utilizadas sobretudo no Natal) e os burros (“exportados para a China”).

O foco do PSD é a criação de “melhores condições para os canis”, uma vez que estes se “debatem com grandes problemas e carências”, diz Emília Cerqueira, para quem o processo de colocação de chips nos animais também é prioritário. “O PSD tem uma longa tradição nestas matérias [de direitos dos animais]. É responsável, mas sem embarcar em populismos.”

Para o Partido Ecologista Os Verdes (PEV), o fim do financiamento público das touradas é urgente. “O ideal até seria a abolição, mas esta já é uma via”, diz Joana Silva, membro da comissão executiva do partido. O PEV revela que dará entrada um projecto de lei que visa a proibição da caça à raposa, ao melro e ao saca-rabo (pequeno mamífero restrito ao sudoeste da Península Ibérica). O partido defende ainda a esterilização gratuita para quem tem “carências económicas”.

Por escrito, o Chega explicou ao P3 que pretende “aumentar as penas” a aplicar em crimes de maus tratos a animais de companhia, bem como proibir a adopção a pessoas previamente condenadas por estes crimes. O Chega quer propor, ainda este ano, a “proibição dos testes em animais para o mundo da cosmética” — contudo, tal já é proibido na União Europeia desde 2013. Defende a proibição da morte dos touros, mas não a abolição das touradas.

Também por escrito, o Livre frisou as prioridades para a actual legislatura na área do bem-estar animal: a abolição das touradas, a proibição do transporte de animais vivos em percursos longos, a redução do IVA de 23% para 6% nos serviços veterinários e na alimentação de animais de companhia e a criação de um provedor dos animais nacional. O partido também quer assegurar que todos os jardins zoológicos cumpram objectivos científicos e pedagógicos, bem como suspender a criação de animais de companhia para venda.

A Iniciativa Liberal e o CDS não responderam atempadamente às questões enviadas pelo P3.

Promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

Sugerir correcção
Ler 5 comentários