Afinal, a pintura figurativa mais antiga representa uma cena de caça
Equipa de cientistas da Austrália e da Indonésia sugere que a pintura figurativa mais antiga que se conhece é da ilha de Celebes e representa humanos com características de animais a caçarem.
Uma pintura rupestre com pelo menos 44 mil anos encontrada numa gruta na ilha de Celebes, na Indonésia, é a pintura figurativa mais antiga que se conhece. E não só: é também a representação mais antiga de uma cena de caça e a primeira em que se mistura o corpo de humanos com o de animais. Estas são as conclusões de uma equipa de cientistas da Austrália e da Indonésia num artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Nature. Há pouco mais de um ano a mesma equipa tinha anunciado que a pintura figurativa tinha à volta de 40 mil anos e era da ilha de Bornéu.
O sítio de arte rupestre onde está a pintura em Celebes, Leang Bulu’ Sipong 4, foi descoberto em 2017 por um habitante local que trabalha com os autores deste trabalho. Com cerca de 20 metros de altura, fica numa gruta em calcário localizada na região de Maros Pangkep, no Sul de Celebes. “Esse habitante subiu a uma árvore para explorar a gruta e detectou uma pintura com animais”, recorda ao PÚBLICO Maxime Aubert, arqueólogo da Universidade Griffith (Austrália) e um dos líderes do trabalho. O investigador adianta ainda que visitou o local em Fevereiro de 2018 para o investigar: “Nunca tinha visto nada assim e soube logo que era especial. Além disso, havia amostras no painel que poderiam ser datadas.”
Com cerca de 4,5 metros de largura, o painel da pintura é composto por representações monocromáticas de pelo menos seis humanos com características de animais e com lanças a caçarem dois porcos e quatro búfalos anões. “Os caçadores representados neste painel são figuras simples com corpos semelhantes a humanos, mas foram caracterizados com cabeças ou outras partes corporais [como bicos e caudas] de aves, répteis ou de outras espécies da fauna endémica de Celebes”, descreve Adhi Oktaviana, também da Universidade Griffith (Austrália) e um dos autores do trabalho.
Através do método de datação por urânio-tório, concluiu-se que as pinturas têm idades mínimas entre 35.100 e 43.900 anos. Até agora, considerava-se que a pintura figurativa mais antiga era um painel com uma espécie de bovídeo selvagem da gruta de Lubang Jeriji Saléh, na ilha de Bornéu, e que tem cerca de 40 mil anos. “Anunciamos não apenas a pintura figurativa mais antiga como também a pintura mais antiga feita por humanos modernos (a nossa espécie) e, provavelmente, a pintura mais antiga do mundo”, afirma Maxime Aubert, assinalando que tem dúvidas quanto às pinturas com 65 mil anos atribuídas a neandertais (outro grupo de humanos).
Em 2018, num artigo científico na revista Science – entre os autores estava o arqueólogo português João Zilhão – sugeria-se que os neandertais já pintavam grutas intencionalmente há cerca de 65 mil anos. Assim, teriam sido eles a fazer as primeiras pinturas rupestres em três grutas em Espanha. Os autores afirmavam mesmo que já se representava animais, motivos geométricos ou mãos impressas em negativo.
Contudo, outros cientistas – incluindo Maxime Aubert – levantaram dúvidas a este trabalho e defenderam que estas não eram pinturas figurativas. Num artigo que assinou na revista Journal of Human Evolution, o arqueólogo questiona sobretudo os possíveis problemas com a metodologia usada para datar essas representações. Mesmo assim, no artigo publicado esta quinta-feira na Nature afirma-se que – embora certos cientistas tenham dúvidas – estas são as pinturas não figurativas mais antigas.
De animais empalados a estatuetas
Quanto à cena de caça, até agora as representações mais antiga eram de animais que parecem estar a ser empalados. Essas pinturas têm entre 21 mil e 14 mil anos e pertencem à cultura magdaleniana no Oeste da Europa, como na gruta de Lascaux (França).
As pinturas de Leang Bulu’ Sipong 4 também destronam a estatueta com elementos humanos e de leão da gruta de Hohlenstein–Stadel. Com 31,1 centímetros de altura e cerca de 40 mil anos, era considerada a representação mais antiga da mistura entre animais e humanos. “Esta figura tem tido um papel importante nos debates científicos sobre as origens da religião, assim como sobre a capacidade de imaginarmos algo que não existe, incluindo esta mistura de humanos e animais”, refere Maxime Aubert.
Aliás, para o arqueólogo, a pintura agora anunciada demonstra precisamente que há 44 mil anos os humanos modernos já tinham pensamento religioso, bem como a capacidade para imaginar o que não existe. Quanto à evolução da pintura rupestre na Indonésia, diz que é difícil de se fazer: “Apenas podemos dizer que há 44 mil anos os elementos-chave dos pensamentos simbólicos e cognitivos estavam presentes neste painel.”
No artigo científico, os autores também destacam que esta é também “a primeira narrativa” visual, ou seja, já “são caracterizadas de forma clara representações figurativas de um conjunto de figuras num espaço próximo umas das outras e podemos inferir acções a partir dessas figuras.”
A pergunta é difícil, mas o que poderá ainda descobrir esta equipa? Maxime Aubert já tem apostas: “Como se sabe que os humanos modernos chegaram ao Sudeste de Ásia há pelo menos 65 mil anos, talvez ainda venhamos a descobrir que a arte rupestre tem essa idade.”