Acabar a viver na rua é fácil. Basta perder o emprego. Levei 10 anos para ter um emprego. Não sei, literalmente, o que é ter 20 e tal anos. Nessa altura da vida estava à procura de emprego. Não saboreei a vida toda pela frente, não vivi a independência, não saí de casa, não conheci outros mundos e outras culturas, não tive tempo, ou paciência, para me divertir, não trabalhei, não aprendi mas aprendi, aprendi sobre a vida o quanto não queria aprender.
E lá arranjei o tal emprego, de onde não saí até agora. Não posso, nem quero, voltar atrás. Tenho 41 anos. Entretanto viajei, casei, viajei outra vez, comprámos uma casa, estamos a pagá-la ao banco. Vamos a exposições, ao teatro, temos várias bicicletas e computadores, jantamos e almoçamos fora, saímos com amigos e há poucas semanas mandámos pintar a casa. De caminho, renovámos a casa de banho e os quartos há dois ou três anos.
Pagamos as contas da casa, compramos roupa e prendas de anos e Natal. Não temos televisão e não temos carro. Mas temos planos, queremos continuar a viajar, ter algum dinheiro no banco, planear a reforma, vender esta casa, comprar outra na velhice. Quero continuar a escrever
Nada do acima descrito é supérfluo. É uma vida. Normal. Sem pretensões desmesuradas, sem fotografias no Facebook ou no Instagram. Não queremos fazer inveja a ninguém, queremos viver. E, no entanto, esta vida, as viagens, os jantares fora, são luxos ao alcance de poucos. Não parece, os restaurantes estão sempre cheios no centro. E ao pé de casa.
Mas se amanhã vier uma executiva incumbida de reestruturar o nosso local de trabalho, rapidamente chegará à necessária (é sempre necessária, mesmo quando não é — e principalmente quando não é) redução de custos. Chama-se selecção natural. Eu chamo-lhe capitalismo. É uma questão de tempo. E como é sempre possível reduzir custos, os nossos lugares, a começar pelo meu, serão colocados à disposição de quem quiser trabalhar mais ainda por menos ou, pura e simplesmente, eliminados.
Se amanhã perder o emprego, não terei outro emprego à espera. Já tenho mais de 40 anos, à porta do trabalho os miúdos de 20 e tal anos fazem fila e já sou demasiado velho e pesado para render o mesmo. E, ao mesmo tempo, demasiado novo para a reforma. Se lá chegar.
Se amanhã perder o emprego, depois de amanhã perco as viagens, as exposições, a vontade de escrever, o casamento, os amigos, a boa disposição, a esperança no futuro, a saúde e, por fim, a casa.
Sem ter para onde ir, juntar-me-ei ao milhão de pessoas sem-abrigo por essa Europa fora, 4000 só em Portugal. Deixarei de ter mãos e pernas, rosto e voz para falar. A noite é mortal e os invernos também. Sem ter para onde ir, cheio de fome, de frio e de medo e demasiado longe dos familiares mais próximos, estarei definitivamente só. E pior sensação não há.
E ninguém vai querer saber. Na Europa do primeiro mundo, na Europa dos ricos, das fronteiras e mentalidades abertas, na Europa da inclusão, do direito à habitação em contraposição com a maioria do mundo, ninguém vai querer saber. Como se sofresse de uma doença infecciosa, as pessoas na rua vão fugir de mim. Por causa do cheiro, por causa do aspecto, da dor, da fome.
As pessoas vão fugir de mim, receosas, e com razão, de igual destino. Mas não por minha culpa.
Basta perder o emprego. É fácil. Estamos presos por fios. Basta perderes o emprego. Estamos todos presos por fios. E todos temos uma história para contar, uma vida tão vivida como por viver.
Vítimas de uma desigualdade a crescer exponencialmente, todos os dias cruzamo-nos com os nossos iguais atirados à rua. É incompreensível. É bizarro. É o reflexo da ganância.
Ao mesmo tempo, na Finlândia, o número de pessoas sem situação de sem-abrigo nunca foi tão baixo. A solução? Dar uma habitação condigna a quem não a tem. Porque é que não pensámos nisto antes?