Podia ter usado a palavra epidemia. Preferi praga. É mais curto. E permite-me usar o termo “praga gay”, como era conhecida a Sida no princípio dos anos 80. No princípio dos anos 80 não se sabia o que era a Sida, não se queria saber sobre a Sida e tinha-se raiva de quem falava sobre a Sida.
Sida e homossexualidade eram uma e a mesma coisa. Não são, claro que não são. Mas à data pensava-se serem. Num mundo onde a homossexualidade era ainda tabu (ainda é, em muitos sítios, em muitos mundos), não se podia falar de Sida sem se falar de homossexuais e restantes membros da comunidade LGBT.
Encarar a Sida como um problema implicava o assumir da nossa sexualidade perante os outros, dizer “Olhem para mim, estou doente” e explicar o porquê de se estar doente. Mas mais, encarar em desespero e desesperança o desfecho desta doença.
Muitos não quiseram falar. Muitos não se quiseram assumir. E morreram em silêncio, depois de muito sofrimento. A vergonha, a falta de amor, rejeição, a não-aceitação da sua diferença como apenas mais uma cor entre tantas calou a boca de milhares, não, milhões de pessoas.
Como sobreviver a uma praga é a tradução directa do título do documentário de 2012, How to survive a plague, realizado por David France.
É um marco histórico. É um movimento cívico. É uma lição de democracia e luta pelos direitos. É gritar na cara dos dirigentes políticos americanos dos anos 80, muitos homossexuais não assumidos, todas as mortes, todos os corpos, todo o sangue perdido e por perder em nome do lucro e da burocracia, seja porque o AZT, o único medicamento disponível, custava 10.000 dólares por ano por paciente, seja porque novos medicamentos nunca levavam menos de sete anos a serem aprovados. E, quando aprovados, apenas disponíveis para os bolsos dos mais ricos.
Como a Sida afectava predominantemente a comunidade LGBT, não se falava de Sida. Porque a Sida afectava essencialmente as franjas mais pobres da população americana, não se falava de Sida.
Ainda não tinham morrido pessoas suficientes. Ou suficientemente importantes. Para dar luz. Para dar voz a quem nunca teve voz.
Ao mesmo tempo, os movimentos LGBT procuravam assumir-se através da promoção do amor livre. Ora, a partir do momento em que se compreende ser a Sida transmitida por via sexual, os gritos contra a promoção deste mesmo amor livre não foram muito bem recebidos, para não dizer ignorados e combatidos pelos membros da comunidade LGBT contra os membros da comunidade LGBT.
Com a disseminação da Sida, gerou-se o caos. O medo. A morte. A recusa, o cada um por si e o salve-se quem puder. Coube assim ao Act Up, movimento cívico com origem em Nova Iorque, chamar a atenção do mundo para um problema já global e globalmente ignorado: a Sida, o Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
E para chamar a atenção do mundo, nada como bloquear laboratórios, bolsas de valores, catedrais, ruas e edifícios públicos e ser preso. Muitas vezes. E gritar. Muitas vezes. Porque não há nada a perder. Dali a cinco anos muitos dos seus já estarão mortos. Mas talvez se salvem muitos mais. Quem protesta já está condenado. Mas não tem se ser sempre assim. E, para tal, foi preciso lutar.
Nos anos 80, a Sida foi, para muitos homossexuais da comunidade judaica nova-iorquina, o seu holocausto. Movidos pela morte dos seus parceiros, amigos, familiares, tomaram nas mãos as rédeas do mundo e do futuro de tantos através da tão desejada aprovação dos anti-retrovirais em meados dos anos 90.
Como é que se sobrevive a uma praga? Não se sobrevive. Para muitos dos elementos do Act Up, os anti-retrovirais vieram tarde demais. Mas para muitos outros chegaram mesmo a tempo. Com o lema “calar é morrer”, o movimento Act Up transformou a SIDA numa doença crónica. E não, ainda não há cura, mas já faltou mais.
Este texto, agora que passa mais um Dia Mundial da Luta contra a Sida, é dedicado aos seus elementos. Por tudo, o nosso imenso obrigado, a nossa eterna admiração. Nunca, mas mesmo nunca, vos esqueceremos.