A greve geral em França
Estão reunidas as condições para um afrontamento maior entre o poder e os sindicatos. O tema é a reforma do sistema de aposentações.
Esgotada a revolta dos “coletes amarelos”, a França reentra em ebulição: greve geral no dia 5 de Dezembro contra a reforma do sistema de aposentações. E, se houver mobilização, greve ilimitada. A febre é alta. E também a retórica: fala-se numa “quinta-feira negra” com epicentro nos transportes e fazem-se referências históricas a Maio 68 e ao Outono de 1995 - três semanas de greve que bloquearam a França. A dramatização faz parte da mobilização da opinião pública.
“Um perfume de guerra social impregna de novo o país”, anuncia o sociólogo Guy Groux. “A situação parece muito crítica e estão reunidas as condições para um afrontamento maior entre o poder e os sindicatos.” De um lado, estão confederações sindicais com uma posição “maximalista”, propondo uma greve ilimitada. E os sindicatos estão sujeitos “a fenómenos de radicalização ou à ultrapassagem das direcções pela base”. Do outro lado, a determinação do governo em realizar uma das emblemáticas reformas de Emmanuel Macron. O conflito, previne Groux, não será apenas um desafio para o poder mas também “um desafio crucial para os sindicatos”, que continuam a sofrer um implacável processo de erosão.
Ao contrário das “vagas de revolta” que percorrem o mundo e dos “coletes amarelos”, esta é uma acção clássica: não surpreenderá, não será inesperada e terá líderes. Resta saber se tudo correrá de forma clássica. E verificar o seu impacto na Europa.
Reforma de alto risco
Macron propõe a fusão dos 42 regimes de reformas existentes num “sistema universal”, assente numa pontuação determinada pela carreira contributiva. Fala em “equidade” e num “projecto de emancipação”. O que está em jogo não é a idade da aposentação, mas os “regimes especiais” de certas categorias, sobretudo no funcionalismo e no sector público. É a isto que os sindicatos se opõem frontalmente.
O Monde, nos seus editoriais, aconselha o Presidente a suspender a reforma. Reconhece a “bondade” do projecto: “Os potenciais perdedores seriam os beneficiários de regimes especiais largamente financiados pelos contribuintes e os agentes activos da função pública que vêem hoje o montante da sua pensão ser calculado sobre os últimos seis meses de actividade e não, como no sector privado, sobre os 25 melhores anos.”
Mas teme que o risco político se torne explosivo: “A defesa dos regimes especiais não é certamente a causa mais popular, mas a crise existencial em que vivem numerosos serviços públicos, a começar pelo hospital, o descontentamento de uma parte dos franceses que se sentem desconsiderados e mal representados, a agitação nas universidades ou a vontade de ruptura de alguns opositores constituem um terreno tão mais perigoso quanto as organizações sindicais sofrem do mesmo descrédito que os partidos políticos. E terão dificuldade em enquadrar a contestação.”
Conclusão do jornal: “Ou o chefe de Estado tem um imoderado gosto pelo risco ou engana-se na análise. A sua convicção é que, se cessar de transformar o país, tal significaria o fim do macronismo.”
A origem da “rebelião” de 1995 foi um volte-face do Presidente Jacques Chirac que escandalizou os cidadãos. Eleito com uma campanha centrada na denúncia da “fractura social”, mal chegou ao poder anunciou que “infelizmente” a prioridade do governo seria a redução do défice. E medidas impopulares, como a abolição de regimes especiais de aposentação. “Incendiou” os transportes públicos e seguiram-se três duras semanas de greve.
“Na política interna, Chirac tinha um estilo marcial mas um temperamento acomodatício”, observa no Libération o analista Alain Duhamel. Macron é o contrário. Anunciou, na campanha eleitoral, uma “reforma sistémica” das aposentações. “Fala como um sedutor mas age como um decisor. Quer fazer da reforma das aposentações um símbolo do seu mandato, ainda que tenha de pagar um preço eleitoral.”
Duhamel aponta uma outra e considerável diferença em relação a 1995. “Em 1995, existia uma alternativa política, incarnada por Lionel Jospin, que na segunda volta das presidenciais tinha obtido 47,4% dos votos. Desta vez, é o contrário. Se existe uma frente social tão impressionante como em 1995, não há nenhuma alternativa política perceptível.”
A aposta sindical
A posição dos sindicatos é mais difícil do que em 1995. Muitos sublinharam, ao longo do ano, a impotência sindical face à aparente eficácia dos “coletes amarelos”, que forçaram Macron a fazer concessões. As confederações sindicais estão decididas a aproveitar a conjuntura. Diz a CGT: “Há urgência, porque há um ponto de ebulição em que as pessoas só se contentarão com a capitulação do governo.” As confederações unem-se no movimento. Apenas a reformista CFDT se recusa a mobilizar contra a reforma. Mas a sua federação ferroviária já depôs o aviso de greve.
A questão das aposentações funciona como um federador de descontentamentos. Os transportes – terrestres e aéreos, incluindo os de mercadorias – servirão de detonador de um movimento o mais largo possível, tentando mobilizar sectores estratégicos do público e do privado, todo o funcionalismo e os estudantes. A “assembleia das assembleias dos coletes amarelos” apelou à adesão à jornada de 5 de Dezembro.
Decisiva será a batalha da opinião pública. De momento, 62% dos franceses dizem-se solidários com a acção contra a reforma. Mas apenas 47% se dizem hostis à mesma reforma. Para 66%, a mobilização de 5 de Dezembro marcará o início de um movimento social de grande amplitude. No entanto, se 38% crêem que o movimento forçará Macron a recuar, 46% pensam que o não conseguirá.
O governo ainda não pôs todas as cartas na mesa e não o fará antes da greve. Insiste em negociar e consultar. A entrada em vigor da reforma estava prevista para 2025. O executivo não chegou sequer a excluir a hipótese de só a aplicar imediatamente aos que agora entram no mercado do trabalho.
O economista Elie Cohen adverte Macron de que uma reforma das aposentações concertada com os sindicatos só é possível quando há novas vantagens a distribuir. “A reforma que visa tirar à aristocracia salarial para dar aos condenados do ‘precariado’ não funciona.”
François Fressoz, editorialista do Monde, aconselha o Presidente a “não despertar a rua, a não provocar de novo a cólera do povo francês, que foi descrito por muitos dos seus dirigentes como ‘regicida’.”
Ainda a procissão vai no adro.