Wen Hui e Jana Svobodová deram voz aos silenciados do totalitarismo
Um espectáculo multidisciplinar revisita a história recente da China e da Checoslováquia, através de memórias de pessoas comuns. Ordinary people está em cena este sábado no Teatro do Campo Alegre, no Porto.
O primeiro encontro entre Wen Hui e Jana Svobodová deu-se em 2012, quando a directora do Living Dance Studio – estrutura reconhecida como a primeira companhia chinesa independente – insistiu em visitar Praga durante uma digressão pela Europa. Através de alguns contactos, percebeu que Jana seria a pessoa ideal para lhe dar a conhecer a realidade artística da República Checa. Uma conversa acompanhada de um café foi suficiente para que as duas percebessem os inúmeros pontos comuns que os seus percursos partilhavam, do âmbito pessoal ao profissional. “Não é de todo frequente encontrares uma linguagem comum logo no primeiro momento”, assegura Jana.
Nos anos que se seguiram, esforçaram-se por não perder o contacto. Foram, aliás, tempos ricos em viagens entre a China e a República Checa, graças aos convites mútuos para actuarem nos festivais das respectivas cidades. Nestes pressupostos haveriam de construir uma “relação de confiança”, assente nas “visões similares” que nem a distância geográfica conseguiu sabotar. Ainda assim, esperaram três anos até que os planos para um trabalho conjunto surgissem. “Foi algo muito lento. Nada do género: ‘está aqui um projecto sobre as duas culturas, vamos!’ Foi algo sustentado.”
O momento certo chegou com Ordinary People, o espectáculo que chega este sábado ao Teatro do Campo Alegre, no Porto. Nele, esforçam-se por encontrar similitudes entre a antiga Checoslováquia e a China, retratando a vida dos “cidadãos comuns” que testemunharam (e no caso da China ainda testemunham) o domínio do sistema totalitário comunista naqueles países. Fazem-no a partir de histórias reais, assentes em “memórias e depoimentos”, assim construindo uma peça de teatro documental, em que a dança, por influência da coreógrafa chinesa, também está presente. Recusam, por isso, qualquer sinal de “representação artificial” ou ficção. “Sempre que alguém fala, a história que está a contar é verdade. Uma das coisas que acabamos por dizer quando vemos o espectáculo é que os bailarinos estão a representar demasiado. Tentamos manter tudo manter tudo o mais simples possível.”
Para adensar ainda mais as narrativas que pretendem contar, Wen e Jana – ambas com um trabalho ligado às questões sociais e políticas dos seus países – chamam a palco músicos e operadores de vídeo e luzes. Trata-se de um gesto de afirmação por parte das encenadoras, que situam a “tecnologia e o trabalho técnico no mesmo nível”. Da conjugação destes elementos com o texto e a dança nasce uma “segunda linha” de expressão que pode complicar o entendimento do espectáculo. Segundo a coreógrafa (e activista) chinesa, Ordinary People pode ser visto “a partir de vários ângulos, já que compila várias histórias com elementos visuais e musicais”. Espera-se do espectador que “tenha a capacidade de compor o seu pensamento sem se perder”. Ainda que isso também “possa ser bom, já que na vida nos perdemos a qualquer momento”, acaba por admitir Jen.
Convidada a reflectir sobre a temática da obra que ajudou a construir, Jana Svobodová considera que “o mais importante”, no que diz respeito aos dois países analisados, é que ambos “sabem o que é perder a liberdade”, e serve-se do próprio exemplo para garantir que “a partir do momento que se experiencia essa sensação um indivíduo passa a ser diferente”. Recorda ainda um dos momentos cruciais para o nascimento do espectáculo: o discurso do presidente checo Miloš Zeman durante uma visita oficial à China, no qual afirmou que a viagem não serviu para discutir direitos humanos, mas oportunidades de negócio para os “cidadãos comuns”. “Era o representante de um país democrático que o estava a dizer. Foi o pontapé de partida: perceber quem fala por esses cidadãos comuns, que somos todos nós, quem diz aos outros quem somos.” Em Ordinary People, “o palco é um espaço de liberdade absoluta em que se dá voz a quem não a tem”, remata Jana.