A Longa Noite da identidade nacional no Porto/Post/Doc

O filme de Eloy Enciso Cachafeiro sobre as marcas do franquismo está no centro de uma das questões centrais levantadas pelo festival portuense. Passa este sábado, no Rivoli.

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Longa Noite, de Eloy Enciso Cachafeiro: regresso a casa de um homem que transporta consigo as marcas da Espanha franquista dr

Num dos mais interessantes momentos do Fórum do Real — o programa de debates que o Porto/Post/Doc organiza anualmente com a presença de pensadores e académicos — a conversa entre a cineasta Christiana Perschon, o académico Daniel Ribas e o poeta Pedro Mexia derivou para a questão da identidade nacional: ainda fará sentido falar de cinema nacional na produção contemporânea?

É uma questão importante quando falamos do documentário e do cinema do real, mas também da própria deslocalização e globalização da produção independente. Por exemplo, o documentário dedicado por Andrey V. Tarkovsky ao seu pai, A Cinema Prayer, envolveu financiamentos da Rússia, da Itália e da Suécia — os três países onde o cineasta russo filmou em vida. Um dos mais peculiares objectos da competição, o descontraído Krabi, 2562, coloca uma cineasta tailandesa, Anocha Suwichakornpong, em diálogo com um britânico, Ben Rivers; em Shooting the Mafia, a inglesa Kim Longinotto foi rodar à Itália uma história italiana com dinheiros irlandeses e americanos.

Sempre foi assim, dir-nos-ão, e é verdade — mas o que é interessante é que onde os “europudins” de que Pedro Mexia falou procuravam uma “língua franca” que acabava por se limitar a uma formatação segundo um determinado tipo de estética narrativa convencional, hoje os cineastas do real tomam o mundo como seu tema e viajam por onde bem entendem, com um olhar que é muito mais pessoal do que forçosamente identitário ou representativo de uma identidade nacional, sem procurar forçosamente uma língua franca.

E, contudo, esse movimento de deslocalização e globalização parece acabar por reforçar a especificidade de autores e visões que transportam a sua própria vivência identitária nos ossos. O cinema de Ute Aurand não muda visivelmente pelo facto de a cineasta alemã rodar fora do seu país natal, tal como o cinema de Audrius Stonys não consegue desfazer-se das marcas da sua aprendizagem no documentário lituano quando vai filmar ao Cazaquistão. Por vezes, é no voltar a casa que essa verdadeira identidade se revela — como acontece com Eloy Enciso Cachafeiro e a sua Longa Noite (que exibição no Rivoli, este sábado, às 18h30), onde temos um cineasta galego que roda na Galiza a falar do seu país, através do regresso a casa de um homem que transporta consigo todas as marcas de uma Espanha que, na verdade, nunca se libertou dos fantasmas do franquismo.

A segunda longa-metragem de Enciso não pode ser mais galega na sua especificidade, mas ao mesmo tempo insere-se num contínuo de cinema de autor que não pode ser mais cosmopolita — é legítimo falar, a propósito deste filme, dos grandes austeros, uma linhagem europeia que pode abarcar Dreyer, Bresson, Straub-Huillet e Costa, tal como é legítimo colocá-lo numa linhagem literária que nos pode levar para Marguerite Duras.

E de repente percebe-se que a questão das identidades — eleita pela organização como tema principal desta edição 2019 do Porto/Post/Doc — pode bem ser uma falsa questão num mundo onde as fronteiras que se julgava terem sido demolidas parecem voltar a erguer-se. Longa Noite insere-se num contínuo de produção de cinema na Galiza a que o festival tem dado especial atenção ao longo dos últimos anos, com nomes como Lois Patiño, Eloy Domínguez Serén ou Oliver Laxe (cujo O Que Arde, desde já um dos mais extraordinários filmes de 2019, chegará às nossas salas em 2020). Dominguez e Laxe, aliás, tiveram filmes a concurso no Porto/Post/Doc, e são exemplos desse cosmopolitismo de que falamos: o primeiro vive na Suécia e filmou em Hamada o povo sarauí, o segundo nasceu em Paris e viveu em Marrocos, onde rodou Mimosas, mas define-se como um cineasta galego.

Pelo meio disto tudo, há um filme a descobrir. Longa Noite, que já esteve no encerramento do Doclisboa, é um objecto que ganha em ser visto e revisto, com novas leituras a abrirem-se a cada nova projecção, como um livro que vamos abrindo e relendo em momentos diferentes da nossa vida. No fundo, as identidades nunca estão estáticas, e um filme galego pode trazer lições para o mundo inteiro.

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